Iara Biderman
Estou dizendo, estou dizendo.
Começou de novo. Britadeira que chama? Estão trocando os cabos, enfiando fibras na rua. Poderia ser pior: bate-estaca do prédio em construção, cada marretada um furo no cérebro.
O quê?
Você nunca me ouve.
Talvez o bate-estaca fosse melhor. Britadeira é aguda demais, sem ordem e lugar; a marreta soca a viga com ritmo. Staccato, das oito às cinco.
Com esse barulho não dá para ouvir nada.
Esquece.
Lembrava de tudo. Compraram na planta, para pagar em três mil dias, descontando a entrada, na entrega das chaves.
Você jurou que não colocava aliança no dedo, então, resolvido: aqui nossas alianças. Ele balançou a argola com duas chaves idênticas, dava para ouvir sininhos. E o bate-estaca, enfiando a viga no solo aos socos. Como aqueles caras que não sabem trepar direito.
Não começa.
Não estou falando de você.
Não deu para ouvir o sininho das chaves jogadas no chão, caíram justo quando a marreta acertou a cabeça da estaca. O corretor se ajoelhou, não podia perder um negócio daqueles, pegou as chaves. Vocês estão fechando a compra na hora certa, isso aqui vai valorizar muito. Viram o lazer na cobertura? Continuava de joelhos. Churrasqueira, salão de festas. Piscina.
É só uma raia, uma reguinha de acrílico azul na maquete. Bem-feita a miniatura do prédio, até vasos nas varandinhas colocaram. Quatro por andar, e tantas janelas.
Tem vista para o mar? Ela olhou séria para o corretor, já de pé, entregando os papéis e as chaves.
Não tem mar nessa cidade. Infelizmente, né? Mas vai ter espaço fitness, esqueceram de colocar na maquete. Academia completa.
Prefiro o mar.
Não está gostando, baby? Ele falou baixinho, a boca raspando na orelha dela.
O corretor estendeu os papéis. É só rubricar todas as páginas, assinatura completa na última. Parabéns, vocês fizeram um excelente negócio. Vão ser muito felizes nesse apartamento. Ela muda, ele conferindo as páginas. Três vezes.
Todas rubricadas. Não tem mais volta, baby.
Só não lembrava quando ele começou com essa mania de baby. Foi antes da mudança, muito antes da britadeira.
Vem cá, ouve, parou.
Continua dentro do meu ouvido. Um zumbido.
Você precisa ver isso. Marca um otorrino.
Não é o meu ouvido. Não teve um dia sem obra.
Você está ficando neurótica.
Já faz mais de um, quanto? Dois anos.
Um e meio. Mudamos em janeiro.
Que bom. Em julho podemos fazer um minuto de silêncio em memória dos dois anos em obras.
Mentira. Quando a gente entrou aqui você até reclamou da falta de barulho.
Reclamei?
Verdade, era mentira. Ela passava horas na varanda procurando o barulho do mar.
Passei a maior vergonha com o corretor de imóveis, ele achou que você estava tirando uma com ele ou era louca.
Não era, mas estou ficando, sabe?
Começou onze meses depois da mudança.
A entrada no apê até foi linda, estilo filme. Sem sofá poltrona cadeira mesa estante geladeira fogão máquina de lavar-secar, parecia maior do que na maquete. As caixas fechadas, amanhã a gente arruma, precisa montar a cama, o colchão embalado.
E para de apertar esse plástico-bolha que está me dando aflição.
Chegou a pizza.
Transaram no chão da cozinha, bem clichê, mas um tesão, ela disse. Na hora ele não falou nada, só depois.
Porque não foi você que ficou com as costas naquele chão gelado. Fácil para quem está por cima, né baby?
Ué, você adora. Adorava.
Você quer sempre ficar por cima, em tudo.
Ele subiu para a academia da cobertura. As obras começaram no mês seguinte. Coisa pouca, ele jurou. Só virar a entrada do banheiro para o quarto. Suíte.
Dá para colocar uma hidro. Olha essa: banheira de canto, para espaços pequenos.
Prefiro o mar.
Beijo, estou atrasado.
Martelada na parede só depois das nove, regras do condomínio. Ela acordava mais cedo, para lavar a cabeça no banheiro de serviço, antes de os pedreiros chegarem. Aceitam um café? Três meses dormindo na sala. Fazia o café e ia para a varanda, até às cinco, esperando a água cobrir tudo, o prédio, a obra, as marretadas. Adivinhava quando o mar ia subir acompanhando de cima os cachorros na rua — os animais são os primeiros a fugir quando chega um tsunami, todo mundo sabe disso. Era loucura, sabia, a maré estava vazante e bichos de apartamento perdem o instinto para catástrofes naturais.
Vem cá, a gente precisa conversar.
Ainda não fiz o jantar.
A gente pede uma pizza. Abobrinha.
Sério? Você detesta pizza vegetariana.
É. Esse negócio de você ficar na obra, conversando com os pedreiros. Não é para dar intimidade para essa gente, aproveitam qualquer desculpa para fazer corpo mole.
Param de bater para conversar. Faz ideia do alívio, uns minutinhos sem aquela barulheira?
Faz ideia do que falam de você? A dona doida acha que tem praia nessa cidade.
Problema meu.
Nosso, baby. Sou o marido da doida, lembra? Perco a autoridade.
Vai pedir a pizza? Fala para não colocarem queijo na abobrinha.
Acordou mais cedo, deixou a térmica na mesa com o açucareiro cheio ao lado, eles gostam mesmo é de tomar açúcar com café, foi para a varanda antes de os pedreiros chegarem. Lá embaixo, uma zoeira de cachorros. Se vier uma onda enorme, chega fácil ao terceiro andar. Carregava tudo, a bergère-presente-da-sogra, a TV 50 polegadas, ele nem tinha quitado todas as prestações.
Isso aqui virou um cinema, baby. A gente vai economizar nos ingressos.
Trocentos canais e nada para ver. Só passa filme ruim.
Está passando campeonato de surfe, vem ver a qualidade dessa tela. Parece onda de verdade subindo direto em você.
Às vezes, é melhor ser surda. Foi para a varanda mais cedo, de novo, melhor hora para tomar sol. A cachorrada continuava agitada, precisou se debruçar para ver melhor. O rottweiler tinha ido para cima da pug, a dona deu chilique, o fortão do rottweiler ia revidar, mas chegaram os deixa-disso. Bem hoje, com o céu seco e essa brisa. Só marola, se parassem de latir poderia boiar até a hora do almoço.
Não vai comer nada mesmo?
Era um peão novo, sobrinho do mestre de obras. Baixo e atarracado como o dono do rottweiler, mas com a pele mais bonita, de quem toma muito sol na vida.
Se quiser, pode tomar banho nesse banheiro.
1,20m por 1,00m, a Maxi Ducha pingando na privada, temperatura Verão. Xampu de cabelos ressecados, condicionador, até o sabonete de glicerina no chão. O biquíni pendurado no registro, sem janela, demora muito para secar.
Quer? Tiro minhas coisas.
Não dá, dona, o patrão disse que vai chegar mais cedo para fazer os acertos.
Era bom acertar logo, acabar com tudo de uma vez. Antes de ficar surda de verdade.
Está escutando? Está me entendendo? O pedreiro me contou.
Agora você deu para ouvir o que “essa gente” fala?
Você subiu no banquinho, se debruçou toda na sacada, o pedreiro achou que ia se jogar dali.
Teve uma briga de cachorros. O rottweiler que começou.
Você já estava sem calcinha quando os pedreiros chegaram?
Sei lá.
Ia se jogar? Estava com essa saia curta, de costas para eles, quando se debruçou?
Como eu vou saber?
Foi só uma semana sem estrondos. Como as pessoas conseguem viver num país em guerra, com todas aquelas bombas, aviões, sirenes? Finalmente passou um filme bom na TV, a dançarina de cabaré encostada embaixo da linha do trem para berrar. Segunda guerra.
E você ainda reclama, baby. Aqui, a gente só vive na paz.
Nem tinham inaugurado a hidromassagem.
Estão colocando fibra óptica, vão fazer um predião aqui em frente. Para gente pode ser bom, baby, quem sabe dá para trocar por uma internet melhor.
Onde?
Bem ali, no terreno do estacionamento. Só é ruim porque vai tirar toda nossa vista. Fica tranquila: amanhã termina a parte da britadeira. Você prefere bate-estaca, né?
Foi a segunda melhor noite no apartamento. Mordidinha na virilha, espasmo na coxa.
Ele sentiu o gosto de sal. Nem desconfiou.
Acordou no escuro com vontade de descer descalça, para molhar os pés. Ele já tinha saído quando o interfone tocou.
Da Casa André Luiz.
Pode subir.
Vai tudo da varanda?
Deixa só o banquinho.
É para levar o sofá e as poltronas também? A estante?
É.
A TV fica?
Vai.
Foram embora sem café e sem gorjeta, tinha se esquecido de passar no banco. Deixou a porta da cozinha destrancada, tirou a calcinha, encostou o banquinho na sacada e subiu.
Nem ouviu quando o peão novo entrou. Estava ainda mais queimado de sol e suado.
Desculpa o atraso. Meu tio pegou outra obra, mas dou conta. Qual é o serviço?
Quebra tudo.
Iara Biderman é escritora, jornalista e crítica de dança.