Cristhiano Aguiar
(Primeira temporada)
Episódio 1: Senado Zombie Star
O sangue e as tripas se espalhavam pela tela — Natanael se divertia com mais uma sessão do Corujão das Trevas, o combo de filmes de terror que passava na TV naquela madrugada. A telinha exibia Senado Zombie Star, clássico dos anos 80, único filme dirigido por L.L. Nestarez, o obscuro cineasta que se autoproclamou o “Lord Byron da Praça da República”.
O casal de protagonistas — um homem negro e uma mulher loira — se esgueirava pela sala destruída do Senado. Naquele ponto do filme o apocalipse zumbi tinha chegado ao Congresso Nacional — havia chamas, vidros, móveis destroçados e os mortos e os nem-tão-mortos. Como não conseguiu autorização dos militares para filmar na locação real, o diretor não hesitou e fez um Senado cenográfico aproveitando uma antiga casa de shows do Baixo Augusta. Ângulos de câmera prestidigitadores, pouca iluminação ambiente e uma edição esperta fizeram um bom trabalho — o puteiro adquiriu ares de política pública.
A loira segurava um pedaço de madeira – faca amarrada na ponta. O homem, uma motosserra. As roupas de ambos estavam rasgadas e manchadas de sangue. O casal procurava uma saída, uma rota de fuga que os conduzisse ao topo do Congresso Nacional, onde um helicóptero apareceria para resgatá-los. Cuidado, esses zumbis aí são barra pesada, Natanael gritou para a TV. Os dois se movimentavam pelos escombros do Senado com cuidado, tentando não chamar atenção de ninguém. Mas aí um dos dois pisou em falso — cacos de vidros no chão.
Cenas depois: a mulher, muito ferida, a ponto de desmaiar, se apoiava no seu companheiro, que mancava e não carregava mais arma. Os dois acabavam de chegar no topo de um Congresso Nacional claramente (mal) feito de gesso e papelão. Nem sãos, nem salvos, mas ao menos não estavam lá embaixo. Alguém virá, com certeza! Notaram um homem branco. No seu braço direito, havia um pano sujo amarrado e ensopado de sangue.
O homem branco vestia roupa militar e segurava um fuzil. O homem negro hesitou. Enquanto isso, a mulher tossia muito e regurgitava secreções escuras, que causaram nojo a Natanael. Cuidado, cuidado! Ele tem uma arma… Mas o homem negro percebeu que a arma estava descarregada. O militar os cumprimentou com um leve mexer da cabeça. Apontou o fuzil, que tinha instantes antes recolhido para perto do peito, na direção da Esplanada dos Ministérios. Apertou o gatilho seguidas vezes. A cada puxada no gatilho, sua boca criava sons semelhantes aos de tiros. Só aí o homem negro e a mulher loira relaxaram. Após cochicharem entre si, sentaram-se ao lado do novo aliado.
Em seguida, o trio contemplou a maré dos mortos.
Episódio 2: Apocalipse-SP (rascunho)
Faustine caminhará pela Paulista no Domingo e encontrará três performers vestidos de vampiros e brincando com as pessoas ou com as bandas e músicos que se apresentam na região. Os artistas performáticos — evitar o termo “performers” — têm a cara pintada e se fantasiam como três Dráculas do fim dos tempos.
- A descrição de um acidente automobilístico
- Fogo, vidro partido e tudo o mais — um braço pendente, ensanguentado, os dedos tortos
No centro da cidade, um prédio interditado — dezenas de janelas; madrugada ruim; maquiagem borrada. Há um cordão de isolamento ao redor da área do prédio. Algum crime? Vai desabar? Vai pegar fogo? Vazamento de gás? Faustine não encontrará respostas.
A cena termina com uma chuva de granizo. Raios pelo céu; a correria (por que penso em pessoas segurando chapéus enquanto correm?); empurra-empurra; celulares pisados — Faustine serena, Faustine no meio da cortina de pedras que desaba na tarde.
Episódio 3: Barbie x Ken
A faca corta o ar: primeiro o reflexo da luz, depois os gritos.
Detalhes em dourado nos pratos, garçons de terno, luz amena, arranjos de flores, móveis caros de madeira. E um piano. Há cinco anos, foi nesse lugar, um elegante e badalado restaurante recifense, que Ken pediu Barbie em casamento. O pedido-surpresa teve para ela gosto de bombom açucarado. E Barbie também foi para ele um bombom açucarado: seu busto decotado, sua pele branca bronzeada, a moldura azul e dourada da face. Barbie, lábios e olhares de menina bem nutrida – a menina gostosa e bem cuidada do papai.
Barbie grita. A faca está afundada na carne. O rosto da vítima se contorce como um papel amassado.
Barbie: olhos imensos, fixos na presa. Ela sobe na mesa e sua silhueta é a de um felino. A faca, enterrada na mão de Ken e por enquanto fixa na mesa, é o centro de uma paisagem. Na toalha branca da mesa, o sangue de Ken se espalha. A mancha de sangue parece um morcego repousando em cima de uma mesa de anatomia. Ou o filho de uma máquina de costura com uma cadeira. O sangue parece uma montanha, uma cascata, o leito de um rio. O sangue é oco.
Barbie, o vermelho pingando da ponta da faca, está em pé, triunfante.
A partir de hoje, ela é uma mulher sagrada. Nela, tigres matam a sede.
Cristhiano Aguiar é escritor e professor, autor de “Na outra margem, o Leviatã” (Lote 42, 2018).