Fred Di Giacomo
Fixem-se naquele ponto que caminha em nossa direção. Aquele corpinho, ali, atarracado que se aproxima ao longe ziguezagueando. Veem? Aquela sombra, ainda incógnita, cujo sorriso aberto está oculto pela contraluz, há de ser mensageira de ventos ruins.
Assávamos tatu-galinha na churrasqueira de cupinzeiro. “Céu pedrento é chuva ou vento”, dizia Gambé mirando o céu enquanto operava os espetos de carne e abanava a brasa quente. “Amanhã chove, mas hoje foi um diazinho magnífico, não foi?”
“Ouve, negrada: Nhô Cornélio Pires diz que dá cinco conto pá nóis, se laçarmos o Cara de Cavalo.”
Galinha ria contente, corpanzil branquelo aprumado em farda azul. Tropa de olho nele com afeição. Promovido a tenente, moral com políticos, carta branca para agir naquele oeste em brasa. Paralelo a isso, santo não era; fora preso, desertara, era repreendido constantemente. Xingava nóis tempo todinho, mas, também, brigava por nós contra os patente altas. Nada não temia.
Cara de Cavalo, mameluco brabo, era bandido mais terrível do sul do Mato Grosso. Cabelos compridos, nariz protuberante, dentes que escapavam dos beiços. Tinha se bandeado pro Paraguai uns tempos, depois virara bugreiro no Paraná recebendo por orelha decepada e viera para São Paulo caçar kaingang pro Coronel Sancho – sujeitinho deplorável.
Cocei o queixo, parando um pouco de picar o fumo de corda. Serelepe, baixote, voltava gingando longe. Pele escura, sorriso bonito e claro, mesmo faltando os dois dentes da frente. Não vinha sozinho. Atrás, descalço, o pombeiro que encontrara naquela vila sem nome. O tal era Tião Ioty, macaquinho no ombro, kaingang amasiado com uma filha de escravos num casebre na beira do córrego marrom. Ioty, rosto e braços marcados por círculos avermelhados pintados com casca da batata-doce e argila, desprezava o bandido Cara de Cavalo, que tinha sangue guarani e traição nas veias.
“Ioty é nome de bugre, é?”
“Ioty é tamanduá, seu Tenente, é língua da gente.”
“Não maliciei. Cê gosta de comê formiga, Tião?”
“Ioty vem de uma história comprida, Tenente. Nós kaingangs somos em metades, né? Sol e Lua, Kamé e Kairu, onça e tamanduá… Os kamé usa pintura preta com risquinho, os kairu pintura vermeia com pintinha.”
“Pra quê?”
“Pra não casá com parente.”
“E que que tamanduá tem a ver com casório?”
“Onça é filha de Kamé e tamanduá é filho de Kairu. Foi assim que se passou: Kamé, que era esperto, criou a onça, rainha da mata. Kairu, irmão caçula, não quis ficar pra trás. Começou a modelar um novo alimal no barro. ‘Massou, ‘massou, mas só podia trabalhar de noite. Quando o alimalzinho tava quase pronto, céu começou parir manhã. Só que faltava ainda língua, dente e umas unhas pro bicho. De dia Kairu enfraquece, não pode brincar de Deus, então se apressou pra botar um galinho fino na boca do tamanduá. “Cê, como ficou sem dente, vai vivê de lamber formiga”, disse. Por isso que o tamanduá, nosso irmão da noite, é um bicho mei torto, inacabado. E eu sou kaingang kairu, né, Tenente?”
Ioty parou a fala no meio e ficou pensativo. Acariciava o macaquinho, olhando o nada. Formigas caga-fogo, em correição, enfileiravam-se no capim.
“Que foi, cabra?”
“Às veiz, penso que todos kaingang, hoje, é kairu. Os brancos são as onça, são ming, e nóis sumo tudo ioty, sem dente pra… Bom, cê quer saber do Cara de Cavalo, né, Tenente? Seu Galinha, esse desgraceira tá entocado com um récula de bandido numa tapera em cima do morro grande. O lugar é ninho de rataria, dizem que tão entocando inté dinamite pra assaltar o trem de pagamento.”
“Ah, dinamite? Aduvido.”
“Aduvide, não, Tenente, juro por Deus que esse Cara de Cavalo é ardiloso e sem escrúpo. Sujeito à tôa, aprendeu com o Sancho Bugreiro a atacar nóis no meio das festa do kiki. Nóis naquela festa santa, depois de enterrar os morto, guiando os espíritos pra num ficar atormentando; separando qual das crianças que ia ser kamé e qual ia ser kairu e os matador cercando nóis, só de espreita. Essa festa é coisa bonita: os kamé velavam os mortos dos kairu; e os kairu os mortos dos kamé. O terceiro dia era o mais importante, quando os kaingangs fazia pintura de proteção e ficavam tudo ali no centro da roda. Aí, fogueava três fogueiras pra cada lado e a aldeia dos mortos vinha dançar c’a dos vivo. Só que do jeito que branco anda caçando kaingang, os fantasmas eram tantos que tavam comandando a festa. Era bonito aquilo de poder dançar com os parente morto, mas, hoje, hómi aprende que conversar com morto não é civilizado. O kaingang era feito de terra, cês são outra coisa, bicho de ar. Agora nóis também tamo meio assim também: papagaio que acompanha joão-de-barro vira ajudante de pedreiro.”
Galinha cerrou os olhos e enrolou o bigode loiro — emudeceu. Não tinha intimidade com índio, negócio dele era caçar bandido. Observou o Gambé e o Ioty na direção do rio com as varas de pescar. Em Rio Claro e em São Paulo, não tivera convivência com nativo. Desconfiava. Eu não queria nem saber, concentrava-me no carteado com Serelepe e mais dois. A gente, pra comunicar as cartas, era só nas piscadelas. A morcegaiada farfalhando trazia noite nas asas. Barulhinho bom de mato. Tenente Galinha não apreciava. Pra ele noite era boa de festá, não de dormi. Custava a pegar no sono sem uma cachacinha que lhe amolecesse os nervos. Também não era chegado em pousar assim no cerrado, era homem de vila, acostumado a dormir em cama macia — sua pele clara esturricava no sol. De noite era só pisadêra, sonhos terríveis. Repetia o nome da mulher “Benedita, Benedita!” Fazer justiça tinha seu preço, eu sabia, mas me orgulhava demais de ser polícia. Queria exterminar tudo quanto era bandido do mundo. Arrancar essas ervas daninhas dos caminhos das pessoas decentes. Gostava do impacto que a farda causava com a mulherada. Era o primeiro da família que lia e escrevia bem. Não sabia só contar os números, não: podia até dar aula, se precisasse. Tinha um apetite pra mulher e cachaça que rivalizava com o Galinha.
“Tive sonho ruim, Cuiabano. Sonho é coisa pra ficá de olho, viu? Esse Ioty, aí, tá trazendo os quebranto pá nóis.” Depois gargalhou. “Quebranto, o quê? Tô ficando frouxo. Amanhã vou pra forra com esse Cara de Cavalo.”
“Temo que trazer o bandido inteiro, mesmo, Tenente?”
Galinha não respondeu. Levantou o resto do pessoal no grito, chutando o Tião Ioty com a bota. “Bamo, cambada do inferno! Bamo, que tá na hora de comer carne de cavalo!”A tropa se enfileirava na estrada, Galinha avistou formigueiro. Uma rainha, centenas de operárias estéreis, meia dúzia de machos felizes que nascem para voar, copular e morrer. O castelo marrom, imponente e organizado, erguia-se no capinzal do cerrado. Foi destruído em poucos segundos pelas pisadas do Tenente.
“Canaia, bicho ruim, te mato desgraça!”. O couro esmigalhava o amontoado formado por partículas finas de terra e as formigas caga-fogo fugiam ferozes tentando, inutilmente, ferroar o carrasco engraxado. Era como se a terra começasse a mover-se, em transe, através daquela multidão invertebrada de corpos amarelados, avermelhados e marrons. Vendo o formigueiro desmanchar, Galinha relaxou. “Suas mundiça, quem manda aqui sou eu! Cadê esse Cara de Cavalo?”
O casebre abandonado ficava num ermo, lugar agradável pra cobra e vagabundo. De lá de cima eles podiam fazer boa mira na gente. No brejo, saracura chamava chuva. “Cuiabano e o Ioty vão na frente de batedor, mas vão se aproximando da tapera por trás, viu? Vamo aprontá uma boa com esses sem-vergonha”. Bandido e matador de índio, aquele Cara de Cavalo merecia ir pro inferno e não pra cadeia.
A catinga vinha de longe se meter no nariz da gente. Urubuzada tingindo o céu de negro rodopio. Tatuzinho carniceiro. “Que azedume é esse, hein?”. No pé do morro; carcaças de porco, miúdos de galinha, espigas de milho, bosta de gente. “Arre, negrada, que bicho porco esse Cu de Cavalo!”. Mosquitada em procissão do brejo até ali. Terra que Deus criara com raiva. Uma cachorrada estropiada descia morro abaixo latindo furiosa. Cachorrinho sem metade da orelha, de pelagem cinza e marrom, parou diante dos restos de um bode e passou a roer-lhe os ossos. “Donde saiu tanto cão? Inferno!” O esqueleto de um macaco, encolhido em posição fetal, lembrava um bebê recém-nascido. Um dos cães rosnou pro Galinha. “Passa fogo nesses, carniça, bamo, gente!” Dei sinal para o Tião Ioty para subirmos por trás da tapera. Não mato nem cobra, vou matar cachorro? Tinha um pequenininho que ficou parado olhando pro Galinha, como se fosse ganhar um osso. Sem chance. Na subida, coisa piorava. Varejeiras verdes zumbizando. Dedos de gente, rosário de orelhas; narizes. Uma flecha cravada num montinho de areia. Olhei pra tapera, algo reluzia. Na estaca de aroeira um crânio pequeno.
“Macaco, Ioty?”
“Nada, Cuiabano, isso daí é criança.”
Chuvarada começou erguer cheiro de terra molhada. Gotas respingando na farda. Passei a destra no revólver enquanto subia o morro escorregadio. Trovãozão brabo, arvoredo balançando. Uma cantiga distante. “Kainguê uã kainguê”. Tião que ia na frente voltou-se com cara de morte e passou reto por mim; carreira alucinada. Saquei o 38 pra queimar as costas do desertor. Bicho covarde! Uma voz me gritou. Tempestade cerrando. Engatilhei a arma, olhei pra cima de onde vinha o berro. Vi fogo, sorriso branco e areia arrepiando brava. Relampejou. Senti a terra abrindo sob os pés e uma grande explosão. As dinamites! Depois disso, de nada lembro – só essa dor, nem quente, nem fria. Morna.
Fred Di Giacomo é escritor e jornalista, autor de “Desamparo” (Reformatório, 2018).