Marcos Vinícius Almeida
Eu já lia sobre física sem saber o que era física e antes mesmo de estudar física no primeiro ano. Eu queria entender as coisas. A origem das coisas. Então assistia um tanto impressionado Carl Sagan caminhar numa projeção do tempo profundo com seu cabelo laqueado, na TV Escola, numa época sem Youtube. Lia e relia os box de edições antigas da revista Globo Ciência e velhas enciclopédias de folhas amarelas onde Plutão ainda era planeta com ilustrações feitas à mão. Pensar naquelas coisas não era o bastante. Um dia, sem pensar muito, eu recortei aquelas ilustrações dos nove planetas do sistema solar e colei no teto do meu quarto junto com a Millenium Falcon e a USS Enterprise. Câmbio. Estou transmitindo de janeiro de 2000. Não se preocupe. Apesar das reportagens alarmistas, o Apocalipse prometido pelo Bug do Milênio foi um fracasso.
Estávamos às vésperas da virada do século. Eu tinha acabado de chegar no ensino médio. E estava muito empolgado com a ideia de ter aulas de física.
O governo só distribuía livros didáticos até o ensino fundamental. Não sei se isso mudou. Mas lembro de pegar aquele livro comprado de segunda mão, capa azul, escrito Física com as sílabas descendo na vertical e o nome do autor “Paraná” na horizontal e o folhear com fascinação. Escolhi uma borracha nova na bolsa da minha mãe e fui apagando os exercícios já feitos e as respostas já respondidas pelo antigo dono e umas contas tortas e uns gráficos de aceleração versus gravidade e também círculos nos enunciados e traços embaixo de exceto e também explique com as suas próprias palavras. Mas tinha que saber passar a borracha pra não rasgar. Eu estava acostumado. A página ficava coberta com uma camada fina, parecendo um farelo. Então eu soprava. Passava a mão. E soprava de novo. O branco do papel parecia mais branco. Umas letras e desenhos perdiam um pouco da cor. E às vezes meu olho ainda encontrava uma perna de número solta, um acento sem palavra. Eu pegava a ponta da borracha, e passava devagar, com cuidado. Depois soprava. No fim de tudo, uns rastros parecendo vales de minúsculos rios secos ou trilhas esquecidas cobertas pelo vento dos séculos. Quase não dava pra ver. Mas tinha uns vestígios nas margens que eu fazia questão de preservar: um telefone escrito às pressas, um endereço pela metade, uma data com um ponto de interrogação, uma frase apócrifa da Clarice Lispector com erros de ortografia. E às vezes só um nome sem sobrenome, flutuando sozinho no meio da contra capa.
Agora estou sentado na arquibancada com outro livro no colo enquanto um monte de crianças e adolescentes correm lá embaixo na quadra. São nove e meia da manhã. E o cheiro de terra úmida e grama úmida ainda estão no ar. Uma névoa espessa comum do mês no começo de julho cobre a serra no horizonte. Enio havia me emprestado aquele livro. Era o livro mais grosso que eu tinha visto na vida. Uma biografia do Einstein que eu lia aos trancos, voltando muitas vezes nos trechos obscuros, destrinchando com cuidado cada uma das notas de rodapé. E foi justamente numa dessas notas de rodapé que encontrei pela primeira vez o argumento de Stephen Hawking contra viagens no tempo.
Matematicamente, segundo a Teoria da Relatividade, o tempo passa mais devagar quanto mais próximos estamos da velocidade da luz. Então, hipoteticamente, se você viajar mais rápido que velocidade da luz, você vai chegar no seu destino antes de ter saído. Logo, matematicamente, era possível viajar no tempo.
Stephen Hawking rebate esse argumento com uma formulação muito simples: se a viagem no tempo fosse realmente possível, nós estaríamos cheios de turistas do futuro nos visitando agora, no passado. Quase como nas escolas de Bill & Ted (1989), jovens estudantes poderiam aprender filosofia na Grécia Antiga, da própria boca de Sócrates, entender a arquitetura romana visitando Roma ainda com andaimes e resolver o enigma dos sambaquis nas praias brasileiras, viajando até 10 mil anos antes do presente. É um argumento simples, quase óbvio, mas difícil de rebater. Lembro que fiquei frustrado quando li aquilo.
O que é isso que você tá lendo aí?, diz o Elvis, usando uns óculos de grau sem grau e uma camisa azul do Cruzeiro embaixo do casaco de uniforme surrado.
Uma biografia do Einstein — alguém chuta a bola alto demais lá embaixo e a bola cai do outro lado do muro. Olho pra cima. Mas acabei de descobrir que não dá pra viajar no tempo.
Elvis senta-se ao meu lado. Está muito interessado. Ele era muito curioso com esse tipo de coisa. Vez ou outra me procurava pedindo umas aulas particulares. E eu adorava ajudá-lo. Uma apresentação de geografia sobre o conceito de globalização, uma prova final sobre a Era Vargas, um seminário de biologia sobre a origem da vida. Ele trabalhava como servente de pedreiro e com pintura. Dizia que estava focado em fazer o ENEM e tentar usar sua nota numa Universidade Federal.
Mas por que não dá?
É que se tivesse uma máquina do tempo de verdade, os viajantes do tempo já teriam voltado pra nossa época. E esse tipo de coisa não é fácil de esconder. Deixa rastros.
Talvez a nossa época não seja muito interessante, ele diz. Não tem mais Pelé, não tem Mahatma Gandhi, não tem Beatles.
Pode ser.
Uma geração atrás, o pai do Elvis e meu pai moravam em sítios sem luz elétrica e andavam por trilhas na mata por mais de uma hora carregando cadernos e lápis dentro de sacos plásticos que tinham sido sacos de arroz ou açúcar até uma escola na zona rural com um única professora polivalente, sem curso superior, conduzindo turmas que iam da educação infantil à quinta série e com uma cantina que servia sopa de fubá com gordura de porco todos os dias ao meio-dia. A maior diversão era um campo de terra com traves de bambu gigante e a merenda do intervalo vinha da goiabeira na época da goiaba e da mangueira na época da manga e da laranjeira na época da laranja. Se não fosse época de fruta nenhuma, bebia-se água. Metiam a boca na bica até que barriga estufasse e ludibriasse a fome.
Vocês têm tudo de mão beijada e não dão valor, era o que meu pai dizia sem parar. E eu nunca entendi o luxo de uma televisão comprada com carnê de prestação e o privilégio de poder só estudar aos quinze anos e comprar livros didáticos de segunda mão e planejar estudar filosofia depois de terminar a escola. E sobretudo ficar acordado assistindo filmes em preto e branco no Corujão ou atravessar noites inteiras lendo o O senhor dos anéis no meio da semana.
O Eder está dando pezinho para o Enio escalar o muro lá embaixo. Sentado naquela arquibancada espiando aquela cena, eu ainda não conhecia uma outra teoria mais sofisticada sobre viagem no tempo: talvez fosse possível viajar no tempo num círculo temporal a partir do ponto que a máquina tivesse sido inventada. Mas esta conversa está acontecendo em julho de 2000. E eu só assistiria ao filme Primer (2004) em 2021. Então eu não tinha conhecimento suficiente para explicar para o Elvis que existia essa outra possibilidade. Tampouco revelar — com as palavras mais macabras do mundo — que quatro anos depois ele estaria morto. Um motorista bêbado. Uma roda solta. Um cadáver numa estrada de terra com o peito esmagado pela traseira de uma camionete. Aos 22 anos. E deixando uma namorada grávida.
Enio desapareceu do outro lado do muro. Seis ou sete garotos enfileirados do lado de cá tentam ajudar. Subindo uns nas costas dos outros e gritando e apontando coordenadas com os braços. Daqui da arquibancada dá pra ver a grama alta. E a cabeça do Enio andando mergulhada lá dentro, rastreando algum sinal. De repente o barulho do chute. Feito um tiro de canhão abafado. A bola sobe ao mesmo tempo rápido demais e em câmera lenta. Experimentamos o movimento, qualquer movimento, sempre com certa distorção. A bola desenha um arco no céu, desacelerando, como se girasse ao contrário. Alguns dos caras correm ao redor da grade em direção ao portão da quadra. Então a bola começa a descer. Acelera e explode num barulho seco bem no meio da quadra.
Pra onde você iria se pudesse viajar no tempo?, Elvis diz de repente.
A pergunta escapa do passado rumo ao futuro feito a luz fantasma de uma estrela desaparecida irradiando no vazio e na escuridão total. E me interroga bem agora. Aqui nessa página.
Eu voltaria aqui, eu digo, eu escrevo. E tentaria te avisar do acidente.
Marcos Vinícius Almeida é escritor, redator e jornalista, autor de “Paisagem Interior” (Penalux, 2017).