Dia Nobre
18:35:00.
a faca deslizou rapidamente pela cenoura. movimento diário de partir legumes, lavá-los, colocá-los em água fervente e servi-los pontualmente às dezenove horas.
quase não percebeu quando-o-fio-atravessou-o-dedo no mesmo curso automático em que escorregava pela cenoura. foi tudo tão rápido. ela só se deu conta quando o carmesim pintou a tábua de madeira temperando os legumes já cortados.
18:35:15.
soltou a faca sobre o balcão e levando à boca a carne machucada, abriu a torneira pra limpar o sangue que escorria do indicador aberto.
o relógio ficou mudo no minuto em que ela olhava descrente:
o dedo partido
o sangue que pingava no seu mais puro magenta
a água gelada sobre o ferimento
o rosto desconhecido refletindo no metal da torneira.
18:35:27.
olhou pra sua existência e pensou:
irrelevante.
não há nada a ser dito.
pra quem cozinhava? por que insistia em legumes que sequer gostava? qual era o gosto da sua comida? que roupa era aquela que vestia e nada tinha a ver com ela? quem era aquela mulher cheia de rugas com o cabelo enrolado em um coque horroroso usando uma maquiagem que agora craquelava de tensão?
18:35:34.
como em um filme estranho, sua vida passava em looping. cortinas fechadas em um cinema infernal no meio do nada. o vazio apontava pro risco redobrado de olhar pra parte que sempre lhe faltara.
se contentara
com o insosso de uma vida comum.
com um marido distante.
com filhos rebeldes.
com um emprego estável.
com a angústia materializada em forma de dor-na-lombar-e-compulsão-por-limpeza.
18:35:46.
sentiu a dor de nunca ter se permitido mais do que a rotina. nunca havia dito eu te amo pra mulher que amava. nunca havia parado pra contemplar um pôr do sol. nunca havia mudado o penteado. eram tantos nunca que lhe faltavam dedos nas mãos pra contar algo que uma vida inteira não dera conta.
acolheu aquele vazio como pompeia acolheu vesúvio deixando-se consumir até as cinzas.
18:35:58.
fechou a torneira. enrolou o dedo latejante em um papel toalha. soltou os cabelos. afrouxou a roupa. tirou os sapatos. pegou a bolsa e a chave do carro.
mergulhou na noite sem saber ainda pra onde iria,
deixando atrás de si um rastro de sangue e lava.
Dia Nobre é escritora, autora de “No útero não existe gravidade” (Penalux, 2021).