Raimundo Neto
Na marca digital da minha imagem escrevi: o lugar que terminou em mim não cabe mais no mundo. Ontem, havia cento e dois likes na imagem do meu corpo trancafiado nesse ar sufocado. Recebi figurinhas meio ridículas de palmas erguidas; um coração amarelo acompanhado de você é forte; que coragem!, depois de uma minúscula casinha desenhada em pixel semelhante a algo comestível. Ligo a câmera, abro uma chamada para uma live, enfatizo o foco no meu copo americano cheio de café, típico de barzinho de alguma categoria dita de quinta, próximo a um pão com azeitona. Recebo mensagens durante a live, quero contar mais sobre nós, mas não consigo; cinquenta e seis pessoas, cinquenta e três, oscilações de presenças, e algumas delas insistem: Ué, vivendo na rua e comendo o pão caro? Acho que elas querem me ver com o pão que o diabo amassou engasgado na alma.
Muitos dias seguem; tenho três mil pessoas seguindo o meu perfil. Algo em nosso corpo rende algum tipo de prazer, porque riem, esses clicks velozes e súbitos que nos alegram e aterrorizam. Estou sujo às vezes; querem saber como tomo banho, como se meu corpo fosse o fim do mundo e coberto de morte não fosse mais possível a recuperação de alguma limpeza. Fui parar no Quebrando o Tabu: homem perde emprego e refaz sua vida vivendo num cyber café no centro da cidade. Refazer a vida num lugar estranho ao que sempre habitei desde o nascimento, como se faz? Não me perguntaram como eu vim começar isso que chamam de refazer-me nesse outro lugar. Como fazer da distância uma saída, e a ferida da fome indolente, a mutilação impiedosa do desemprego? Mil likes, mil corações e toques abrem-se na tela diante do meu desespero apático, e iluminam as repetições dos fracassos entregues pelo passado. Há um nível de desespero aceso no meu corpo, dois anos depois do emprego perdido, quarenta anos no que dizem já ser o tempo envelhecido dado a mim pelo conglomerado capital-sucesso-lucro; e quando desespero assim não sei gritar injúrias e revoltas, apenas ligo a câmera do aparelho inteligente e projeto-me inventado, e ainda real, nada menos que real.
Tornaram-me um produto vencido, e o que rende disso assume-se em saldos de um tipo perverso de diversão em quem me vê, do outro lado de qualquer sistema com acesso a conexões e fluxos de uma rede mundial. A plateia virtual pede que eu invente o meu fim; que eu grave vídeo e fotografe; precisam rir-chorar quando me veem deteriorar a dor. E dói. Dói porque pedem mais, meu corpo fechado num cyber café, à espera de um emprego e vagas fantasias, você não, não cabe aqui, e eu tento, até tento dizer que sim, olha o lugar que me cabe; e já vivi dois anos e seis meses aqui, nem o amor cabe entre o copo americano e a tela do celular. Digito meu currículo nessa máquina franzina na mesa de centro, dentro, que fica no canto, na cabine, sentado no colchão do tipo tatame, que não é nem colchão nem tatame, é um desconforto recém inventado; é aqui onde durmo e vejo o tempo cochilar soluções sem esperança. Um tipo de plasma na tela flutua entre as letras digitadas em toda a extensão do meu currículo, três línguas, vinte países, vinte e cinco anos no mesmo cargo. E o que tenho agora é uma mobília inexistente num cubículo cheirando a café, lámen e fluxos de poluição, meu cubículo. Meu, não; pago um valor semanal. Nem tudo que ocupo hoje se torna propriedade minha.
Acho que me veem à espera de um desastre, a intenção de oferecer-me todas as culpas, você não muda, não quer mudar, é só acreditar e tudo pode acontecer; e acredito, espero, e nada acontece, nada que possa me tirar do lugar estreito que é a cabine escura que se tornou meu lugar de morar. Então esperam o desastre. Oitocentos likes querem ver o tamanho dos meus fracassos. Mil e duzentos likes. Seis mil likes em cinco minutos, a imagem: eu e Kami abraçados num ensaio de beijo patético, parecemos felizes, soamos decepcionados, como se encenássemos uma comédia de caos e catástrofe, aqui dentro; mas não pode ser uma comédia. Kami é uma vizinha; ela fica na cabine à minha frente, número ímpar. Não sabemos se namoramos; propusemos questionamentos entre nós: quando não se tem mais nada é possível ter amor? Kami não se lembra da própria família, ou não quer se lembrar, não me diz; a minha família e a cidade onde nasci desapareceram depois de um vírus mortífero, cruel; também não sei contar a Kami sobre catástrofes. Os olhos e a boca, a sua, estão armados em um não plácido, quase tudo em seu corpo é uma negativa; talvez o medo do mundo em que vivemos, sem saída, tenha transformado o corpo de Kami em medo intacto. Kami nunca mais disse sobre si como homem ou mulher; foi o que aprendi nesse tempo que passa por nós. Você me ama, Kami? Não. Me dá um beijo, Kami? Não. Você é homem? Não. Mulher? Não. Você quer voltar a morar na rua, Kami? Não. Faz uma pose bárbara e moderna para a próxima fotografia que alimentará o feed, Kami. Não. Kami aceita, ainda negando, o que é estranho, fotografar-se ao meu lado, um tipo de beijo escândalo ensaiado.
Vemos os likes, sabemos os números e o alcance; dizem que nossa vida pode mudar para melhor, vocês vão conseguir e crescer. Você acredita nisso, Kami? Não. Com o rosto de Kami perto de mim triplicam as mensagens e os comentários, que lindo o amor, grande bosta, morram, tão fofos, fofas; horrorosos; que nojo. Dois corpos simulando um acontecimento inebriado, dramático, esperançoso; um espetáculo em 6 metros quadrados. Digo cubículo, mas é um retângulo perfeito. O teto de cada cabine é vazado, e sobre cada uma delas há o teto do Tokyo Cyber Café, cinza e misterioso, expansivo e pacientemente organizando-se em uma comunidade de pessoas como nós. Daqui sentimos o cheiro de Shimizu, a moça da recepção e da gerência, irmã do dono de tudo aqui, que nunca conhecemos, mas é para onde vai nosso dinheiro. Ela é pensativa, Shimizu, e tem um jeito ardido de chamar nossa atenção se atrasamos o pagamento, se falamos alto, se resolvemos dormir na mesma cabine, se choramos. Shimizu fala inglês e português também, e é assim que ela tenta nos negar pedidos acidentados — só mais um dia, preciso do pagamento. Shimizu entende a fluência da nossa estrangeirice, um ritmo ainda estranho aprendido entre os desamparados. Tentamos o inglês, já que somos dominados por esse fluxo de dizeres. Kami conhece Shimizu desde antes, antes de tudo, muito antes do Cyber Café. Kami a conhece das redes e conexões. Shimizu tem sessenta mil seguidores; sessenta mil perfis acompanham as danças coordenadas de trinta segundos, suas propagandas de aplicativos de compra e venda de produtos de embelezamento. Kami era uma seguidora qualquer, e agora estão aqui. Shimizu é uma funcionária leal e uma irmã solidária. Ninguém sabe o nome do patrão, seu irmão, um passado insondável em algum lugar do país. Parece que Shimizu vende os movimentos, um lucro eletrizante circula e fornece dinheiro virtual, e as contas pagas; Shimizu não vende qualquer elemento do corpo, disse-nos que jamais chegaria a esse ponto. Ela cria palavra para descrever o que parece sucesso, conhecidíssima pela capacidade de simpatia irritada na recepção e gerência do Café do irmão, e renova a ânsia e um tipo abismado, canalizado em impulsos elétricos e fibras de vidro, no centro da cidade. Shimizu construiu um altar no outro mundo, além tela, e agora recebe quase mil adoradores por mês.
Kami quer dançar na cabine, quero ser como Shimizu, não como você. Precisamos sair para dançar; tentar dançar. Somos muito apertados um no outro, tropeçamos em nossos nervos desastrados, um talento amputado. Muito apertado, Kami. Tentamos fazer o que Shimizu faz nos vídeos; simples e impossível. Kami quer mais visualizações, quer que vejam o que sabe fazer muito mal. Quem sabe não vencemos na vida? Kami, o que somos rende adoradores se começarmos a doer.
Kami então morde meu ombro esquerdo, a primeira vez casualmente. Uma mancha vermelha efusiva floresce na pele, entre seus dentes um desejo resplandecente, quase um reflexo dramático da tela que nos assiste. Resolvemos arranhar nossas costas, inventar tipos de fraturas nada graves, quase feridas, os olhos elétricos crescendo quando começamos a sangrar. Morde uma segunda vez, Kami, e a audiência borbulha reações invasivas que tentamos decifrar; não é bem uma invasão, são olhos convidados. Eu também mordo Kami, seus dedos da mão direita, depois engulo metade da mãe esquerda, temos oito mil pessoas vidradas no “casal morador de um café”, localização Tokyo Cyber Café. Muitos riem, perguntam se enlouquecemos de vez. Resolvemos nos beijar, enganar a impressão odiosa com algo de amor aparente; e começam a nos dizer loucos. E quando não fomos alguma loucura, Kami? Foi assim que nos tiraram os empregos, um dia, do dia para a noite, disseram-nos improdutivos, disfuncionais, irreparáveis, e nos tiraram as funções; a partir daquilo passamos a querer recuperar algum lugar no mundo; logo não tínhamos mais onde morar; como é que se paga a vida sem ter qualquer papel na máquina que o mundo se tornou? E quando não fomos essa loucura, Kami?
Os dedos brilhantes de luto precoce clicam nas nossas imagens, como se fôssemos morrer ao vivo, a qualquer momento, filmando aquilo semelhante à decadência, na análise daqueles olhares. Filmamos o cotidiano, o lugar tornado nosso, continuamos pessoas vivas, e o mundo arranja contrariedades, um sistema monstruoso expulsa-nos de todos os espaços, empregos menores e salários raquíticos, nada sobre nada, a não ser o Cyber Café e Shimizu a acolherem nossos sonhos quentes, ásperos, requentados.
Oscilamos entre o celular e a câmera conectada ao computador-mobília da cabine. Kami pula até o meu cubículo, presença sorrateira, dentro da madrugada, para que Shimizu não desconfie; mas ela desconfia e berra um shhhhhh penoso do seu centro de controle. Exibimos o que contamos sobre a rotina; nossas perambulâncias pela cidade, milhares de pessoas como nós nas ruas, labirintos trágicos de perdição, milhares de outras pessoas espalhadas em filas e currículos impressos na alma, símbolos amarrotados de pedidos de socorro. Contamos ao vivo como estamos nos sentindo. Kami ri sua gargalhada alarmante, embora a tristeza nunca decepcione, nunca nos decepcione; logo emudecemos esperando as mensagens, e os olhares aumentam, sobem os números progressivamente, acreditamos então que o que dizemos é importante sobre o que não temos, tudo o que não conseguimos mais ter, o que não conseguimos realizar, a derrota sublinhada em nossas expressões pintadas com camadas de um filtro perolado fumegante. Os números e conexões continuam a crescer, um tipo de orgulho inflama nosso ânimo; Kami soluça gritinhos, como se no final do espetáculo fôssemos imediatamente existir num lugar confortável, reempregados, longe da doença da rua forjada para nós. Mas não nos pagam. Os números não se transformam em dinheiro. Não nos pagam com dinheiro. Riem, e abrem oferendas a um deus, deus me livre, deus me defenda, foi deus que quis, peçam a deus; mas não tivemos, no fim, qualquer pagamento. Pagamos Shimizu com alguma renda que conseguimos distribuindo panfletos, ofertas e propagandas, pela cidade; ou cargos temporários em férias e festividades, valores rápidos, superficiais, latentes, que nunca suportam quantias grandes que venham a sobrar. O peso do mundo afunda o pouco recebido, esmaga o nosso bolso, impõe silêncio àquilo que nunca nos pagam.
A audiência pede gravações da comida ingerida. Querem ver mais uma vez nossas cabines. Querem saber como é nosso café da manhã, como é o café no Tokyo Cyber Café, entre computadores, fios e uma nuvem afetada de suor remanescente; o clima abafado dos apartados; café, ovos, macarrão, caldo de algo que arde e sussurra frituras, e os pães com azeitona. Crocante por fora, leveza saborosa por dentro. É saudável? Orgânico? Light? Pesa na barriga? E no bolso, pesa?
As luzes permanecem ligadas dia e noite; um circuito denso de lâmpadas coloridas organizadas nas paredes e sobre nós percorre as quarenta cabines; um único interruptor; sombra e luz compartilham cúmplices os espaços entre nós, quarenta corpos volantes; um tipo curioso e frugal de requinte e discrição, outra cumplicidade que só Shimizu seria capaz de ordenar. Um triunfo discreto rebenta no espaço criado por Shimizu, uma grafia visual que algumas vezes diz sobre suas crenças, suas conquistas.
Uma estação de metrô é vista pelos meus olhos nus de dentro do Café. Meus olhos alcançam o movimento que infunde terror às horas. Não sei explicar a Kami o que acontece. Kami enxerga apenas a frequência dos vultos, uma energia barulhenta respinga sobre o seu corpo; preciso descrever a enxurrada de pessoas avolumando movimentos de ir e vir. Kami acolhe os rumos dos nervos entre os dedos e entrega a mim sua respiração ofegante, nervosa porque tudo parece caótico diante de nós. A cidade inteira armada em caos, Kami. Shimizu nos pede para falar sobre isso nas lives. Contem sobre vocês e sobre isso que vocês fazem. Você quer dizer contar sobre nossa miséria, Shimizu? Ela diz isso como um caminho para o incentivo, não quer nos machucar, sabemos. Sugere, inclusive, o nome que podemos usar no nosso perfil oficial Sonho quente bem servido. É a cara de vocês. Vocês dois são um instante único, ela diz também, tem algo diferente em vocês. A miséria, é o que você quer dizer, Shimizu, a nossa miséria. O mundo precisa conhecer a nossa miséria, Kami? Substituam a miséria por um sonho e tudo vai voltar a funcionar para vocês. Como é possível substituir um sonho, eu não sei. Nem eu, eu li em algum perfil desses que nos encorajam a vencer, disse Shimizu. Eu também li em algum lugar que a única coisa que pode substituir um sonho é a realidade. Basta olhar para nós. Você vê?
E Kami pede que eu diga o que contam os olhos que nos veem.
Kami quer encerrar a live. Muda de ideia. Agora Kami quer conectar a câmera vinte e quatro horas diante de nós, acoplada ao nosso corpo; quer enfiar olhos tecnológicos em suas órbitas obscuras; quer que nos vejam até quando dormimos. Quer que sejamos um tipo infinito de gente, mesmo que estejamos desaparecendo, constituindo sombras desconhecidas e contundentes.
Quem sabe assim vivemos mais, numa infinita transmissão on-line.
Kami quer que a vida continue. Quer que sejamos eternidades.
Raimundo Neto é escritor, autor de “Todo esse amor que inventamos para nós” (Moinhos, 2018).