Nathalie Lourenço
Nunca estivemos sóbrios no Fritos Lanches. Era uma portinha no segundo andar de um sobrado, embaixo havia uma padaria com a porta de ferro invariavelmente desenrolada, às duas, três da manhã, quando chegávamos com estômagos cheios de cerveja e sem nada em estado sólido. Os salgados rombudos, a dois reais cada, faziam do Fritos Lanches uma parada obrigatória nas peregrinações da madrugada, depois que os garçons do Tio Zé se cansavam de nós, e se punham a jogar os baldes de água e cândida a poucos centímetros dos nossos tênis.
A escada de metal rangia, Igor jogava seu peso de mamute para um lado e outro, querendo extrair gritinhos de medo de mim e de Lica que subíamos logo atrás, Digão mais abaixo, braços preparados para recolher quem caísse. O lugar parecia uma cantina de escola, com o cheiro de gordura que grudava no cabelo, luzes fluorescentes de bastão penduradas sobre o buffet de salgados self service, coxinhas que precisavam da mão inteira para segurar, esfihas massudas, risoles pingando queijo. As quatro mesas grandes de fórmica reforçavam essa impressão: de que a qualquer momento, em algum lugar o sinal ia tocar e os bêbados, os nóias, os seguranças saindo do seu turno se reuniriam em uma sala e abririam cadernos mesmo sem pretensão de anotar nada.
Gostávamos do preço e dos salgados, e mais ainda da aparência sórdida, da saída de ar por onde dava para ouvir o arrulhar de pombos e da impressão de frequentar um lugar secreto que parecia existir apenas para os que resistiam ao fechar dos bares e dos olhos. Na manhã seguinte diríamos à Paula, Ivan e Quique: perderam a melhor parte, perderam, perderam, perderam, ainda que Lica estivesse já quieta e olhando para o nada e Digão naquele momento em que repetia a mesma piada quatro, cinco vezes para garantir que não rimos por que não era engraçado – e não porque não tínhamos ouvido. Eu estava empapuçada e sentindo os primeiros sinais do tédio mas não queria voltar pra casa e deslizar de volta ao papel de mãe, Rubinho a todo momento querendo puxar a minha mão, a minha roupa, o meu cabelo como se quisesse arrancar uma parte de mim. Enquanto eu estivesse ali, eu era jovem e era livre, mesmo que a liberdade tivesse o gosto de gordura rançosa. Entramos na pequena fila e enchemos as pequenas bandejas de plástico com salgados em seus saquinhos de papel.
Todas as quatro mesas já tinham algum ocupante. Lica ia na frente e optou pela mesa onde uma mulher que vestia vários casacos sobrepostos mastigava uma esfiha sem a menor pressa. Tinha olhos fundos, como se espiassem de dentro de uma gruta e um rosto ossudo, sem expressão, tão magro que as maças do rosto faziam sombra. Ao seu lado, uma garrafa de refrigerante vazia, com canudos dobrados para dentro, e um menino de sete ou oito anos que dormia, com a cabeça apoiada em uma trouxa de roupas. Digão se lembrou de pedir “com licença” antes de sentar e ela assentiu com a cabeça. Nos acumulamos no lado oposto da mesa, deixando o carboidrato e o sal reacender o entusiasmo que estava prestes a se apagar. Começamos a fazer planos para um dia indeterminado, em que Igor pediria a casa do amigo de um amigo de alguém e Lica traria bebidas baratas do fornecedor de seu bairro. No Fritos Lanches havia também cervejas, de preço inversamente proporcional ao dos salgados e estávamos tortos o suficiente para achar que pedir algumas seria uma boa ideia.
Eu ria dos planos, pegando altura na bebedeira de novo, observando novos estranhos que entravam e saíam, mudando a paisagem do lugar a cada dez minutos. Fazia meu melhor para ignorar que acordaria menos de duas horas depois de dormir, ao som dos desenhos animados. Por que gritam tanto nos desenhos animados? No caixa, um homem alto pedia o troco aos berros. Um senhor calvo com fios de cabelo emplastrados na careca. A mulher dos vários casacos continuava na nossa mesa. Ruminava, ruminava e a esfiha não parecia ter diminuído um grama. Digão deve ter visto que eu a olhava e falou para a mulher:
— Minha senhora. Será que você não deveria levar o menino pra casa? Isso não é lugar de criança dormir.
— Não posso acordar ele agora.
— Vai acordar um pouquinho e depois vai dormir melhor. Vá pra casa. – e hesitou – Você quer um trocado para a condução?
A mulher dos casacos, tão quieta durante todo o tempo em que estivemos ali começou a falar alto, um metal afiado na voz, mas sem se descolar da parede onde se apoiava.
— Vá cuidar da sua vida, ô bêbado traste!
Havia uma risada entre nós, um comentário circulando sem som, um espanto pela violência daquela reação. Somos bêbados desagradáveis. Cumprimos sua ordem, mas fazíamos pequenos desafios, falávamos cada vez mais alto, batíamos o copo na fórmica, deixávamos rolar guardanapos sujos para aquele lado da mesa, cada vez mais perto de onde a criança dormia imóvel, tentando tirar da mãe o próximo grito.
Igor foi buscar mais cerveja. Quanto a mim, não conseguia parar de olhar para a mulher que segurava a esfiha sem comer, esperando que o tempo a desfizesse. Esperava que fôssemos embora, quem sabe, porque olhava o relógio vagabundo na parede oposta e olhava para nós, e quase sorriu quando Igor se levantou. Em poucos segundos ele batia com força um novo casco na mesa. Como aquela criança não acordava? Era já tarde, tão tarde que logo seria cedo e nós bebíamos cada vez mais devagar, já sem vontade de tomar o líquido, querendo apenas permanecer. O Fritos Lanches fechava pelas sete, quando abria embaixo a padaria. Não podiam existir ao mesmo tempo nem por poucos minutos.
Um idoso de olhos vermelhos sentou na outra ponta da nossa mesa. Devorou em segundos um enroladinho e se foi, como se aquela fosse uma missão. A mulher dos casacos agora nos olhava abertamente, e nós olhávamos para ela e voltávamos a nossos pequenos assuntos. Enfim, ela se remexeu e guardou a esfirra quase inteira em seu saco de papel, que colocou ao lado do menino que dormia, enquanto mexia na bolsa.
Igor gesticulava ao contar pela segunda vez na noite a história de seu acidente de carro, e me virei para acompanhar a descrição minuciosa de como a lataria ficou parecendo papel alumínio e de como ele saiu do carro e caminhou por duas horas na rodovia antes de ser encontrado. Na primeira ele tinha contado melhor. Como já conhecia a história de cor, levantei para ir ao banheiro, uma porta no fundo do salão que dava acesso a um vaso sem tampa, de onde um fio de água escorria sem parar. Não havia papel higiênico nem papel toalha, tive que me chacoalhar bastante antes de vestir a calcinha e lavar as mãos. O salão já parecia ter mudado de configuração novamente, uma das mesas tinha quase todos os lugares preenchidos por motoboys que faziam algazarra. Cheguei à mesa enxugando a umidade nas laterais da calça. Igor já narrava sua briga com o atendimento do seguro que não queria pagar pelo conserto. Um pouco de luz cinza entrava pela janela, havia um um sujeito magro e tatuado fumando na janela, olhando feio para a mesa barulhenta. A funcionária do caixa fixava o celular. Entrei também no meu Facebook, mas não havia muitas atualizações naquele horário. Lica quis encher meu copo outra vez, e eu deixei, mas não encostei mais na bebida. Lenta, ia percebendo a criança que dormia com a cabeça encostada na trouxa. Os motoboys se provocavam e gargalhavam na fila do caixa. A criança dormia com a cabeça encostada na trouxa. O homem que fumava puxava assunto com um senhor da outra mesa. A criança dormia com a cabeça encostada na trouxa. Cutuquei Digão, que estava mais perto e ele se levantou, rodou pelo lugar e parou na frente da atendente:
— A mulher que estava aqui, ela já foi?
Ela parecia cansada e deu de ombros, como se não houvesse nada de errado. Senti minhas pernas mortas quando me ergui, e quase sem respirar, me aproximei do corpinho da criança que dormia, vestia um moletom grande. As costas subiam e desciam sutis o suficiente para me apavorar por um segundo. Catei a garrafa de Coca-cola e coloquei debaixo do nariz. Tinha um cheiro que eu reconhecia do início da noite, de cana, de cachaça.
— Ele está com vocês?
Era a atendente, que trazia na mão o produto multiuso e o pano para fazer a limpeza antes de fechar. A luz que entrava pelos vidros sujos nos dizia que a manhã vinha chegando. Tive muita vontade de já ter ido pra casa.
Nathalie Lourenço é publicitária e escritora, autora de “Tudo meio horrível” (Caos e Letras, no prelo). “Seis da manhã no Fritos Lanches” é um conto do livro “Tudo meio horrível”, que será lançado pela editora Caos e Letras em julho de 2022.