Bruna Beber
Para Keli e Letícia
Passei meus primeiros cinco anos de vida De molho no permanganato de potássio: “A pele é muito grande, o bicho rói!” Ao sete, promovida ao tanque de cimento, Vovó me banhava e gargalhava e dizia: “Vai aprender a descascar uma laranja!” Quando fiz uma década, ganhei uma faca, A primeira, uma faquinha, e cortei o dedo, Então disse: “Vovó, me pinta!” Ia ela capengando pra terceira gaveta Da cômoda onde reinava, em sigilo, O banho de luz: “E um copo de vinho?” Aos sábados, batida de coco. Aos domingos, chupávamos peixe com pratada de grão de bico: “Agora um cálice de licor de jenipapo e um cochilo!” Comíamos figos, pêssegos em calda, sorvete de passas ao rum, depois íamos dormir: “Sonhei com avencas e samambaias se abraçando!” No meu, todas as casas também tinham um pé De nêspera, de dia colhia-se manga espada e Cajá e crianças roubavam romãs da vizinha. “Acorda e vai beber água da bica!” Fazíamos alongamento pro corpo crescer, a pele Colar no corpo e os músculos segurarem os ossos. De tarde tinha a cata do feijão, e assim me ensinou Matemática; também gostava de narrar plantações de arroz: “Bico calado e cava a vida, tudo chegará.” Vovó nunca cantou uma música, mas gostava Do bailado, e assim me ensinou a rezar: “Na vida Se agradece a comida, a bebida, o sono e a saúde.” Vovó era analfabeta, e me ensinou também a ler. Meses antes de encantar, aos 92, me soprou: agora que sou criança já posso descansar.
Bruna Beber é poeta e tradutora, autora de “Ladainha” (2017, Record).