Fabiane Secches
Era verão e Júlia passeava na companhia da irmã mais velha, as duas concentradas no sorvete que viria. Iam dizendo quais sabores pediriam, três bolas cada uma. Seguindo o desafio há tanto inventado, tinham que escolher sabores diferentes, o que quase terminou em briga: quando a irmã disse flocos, Júlia lhe deu um empurrão. Ela nunca escolhia flocos, era sempre morango, chocolate, creme. Às vezes, trocava o creme por limão, coco ou outra fruta da estação. Júlia adorava sorvete de morango e precisava se contentar com uma lambida. Mas flocos era seu e ponto final.
A discussão estava a ponto de se agravar quando Alfredo interviu. Na outra calçada, caminhando com elegância, chamou a atenção das duas irmãs de imediato. O atrito ficou em suspenso.
Quando chegaram em casa, sem sorvete e com o novo amigo, os pais a princípio não aprovaram. Sendo Alfredo silencioso e reservado, acabou por conquistá-los. A ligação com Júlia foi instantânea, compreendiam-se sem palavras, telepáticos. No início, a irmã ainda tentou disputá-lo. Em vão.
Isso já tinha oito anos. Agora, Alfredo enfrentava complicações de saúde, enquanto Júlia havia se transformado em uma adolescente tímida, o rosto coberto de espinhas. Usava aparelho fixo e o nariz se acentuava. A irmã já não vivia com a família, fazia faculdade longe de casa. Os pais andavam se estranhando, o princípio de uma crise que terminaria em divórcio. Só a amizade com Alfredo trazia algum alento. Seria uma separação dolorosa.
Numa manhã de outono, ele acordou abatido, parecia sentir dor. Como era custoso levá-lo à clínica sem saber se voltaria. À noite, nos sonhos de Júlia, a pelagem preta e branca se acomodava em uma casquinha de sorvete, o corpo elástico de Alfredo se moldava todo. A irmã e ela riam muito, usavam vestidos coloridos. Na realidade, luz fria, azulejos brancos e odor etílico. Ela foi a contragosto, lágrimas antecipadas brotavam com insistência. Alfredo alheio, conformado, a confiança plácida que sempre teve na menina.
O caminho pareceu mais difícil dessa vez. O conforto, para ele, seria pensar no atum que mais tarde viria. O plástico duro da caixa de transporte, o barulho agitado das ruas, a violência das rodas contra as lombadas; quanto mais dura a corrida, maior seria a porção. Assim fora o contrato, desde o primeiro dia. Chegaram à clínica como um velho casal: ele, sem disposição; ela, entristecida, levando consigo o anseio de um amor muito mais longo do que aquele seria capaz de durar.
Fabiane Secches é psicanalista, tradutora e crítica literária.