Aline Bei
não há problema algum em querer uma boneca,
ou h á ? a jovem enfermeira se pergunta
olhando para a mulher sem idade que está contorcida na cama desfeita, suando como se morasse em um forno.
a jovem se aproxima
do rosto da mulher
com um pano que fora umedecido na bacia de alumínio ao pé da cama, aquele barulho d`água
acalmava a enfermeira desde menina, a levava para o interior
de suas frestas, a mãe lavando roupa
enquanto ela corria ao redor da casa
como se fosse uma volta ao Mundo
e os lençóis uns muros
nada difíceis de transpor.
a mulher sem idade vestia um camisolão antigo
que era lavado com cada vez menos frequência
já que a mulher não aceitava outra roupa, sofria com a ausência do tecido. quando o cheiro se tornava insuportável
então as enfermeiras tiravam o camisolão à força e, depois de tanta resistência, a mulher sem idade esperava
na frente do varal
Obediente ao tempo de secagem, humilde como uma santa desconhecida ao fundo da igreja.
— uma boneca! uma boneca! — ela implorava
e a sua voz era quase um canto
certamente belo
aos olhos de quem assiste aquilo pela primeira vez.
a lamúria, ela
parecia guardar
um grito maior, Definitivo
que não conseguia escapar
da boca
talvez pelo cansaço de carregar uma dor que jamais fora compreendida por alguém que morava do lado de fora de seu corpo.
na janela do quarto
havia uma árvore centenária, a grande força, e a jovem enfermeira reparou que, da cama, o rosto da mulher sem idade ficava metade noite/metade dia
como se fosse uma tela
a óleo
que quisesse exprimir a beleza conciliatória de um crepúsculo.
*
a enfermeira saiu do seu primeiro dia de trabalho pensativa.
caminhou até a estação de trem
sentindo nos dentes
aquele tremor dos trilhos.
ao chegar na estação, a jovem reparou em uma pequena loja
escurecida entre os comércios
na vitrine, um boneco
com olhos de botão.
entrou
avisada por um sino,
o homem atrás do balcão não se moveu.
ela nunca tinha visto uma loja de brinquedos tão silenciosa. mal iluminada também, no entanto era assim que o homem mantinha o seu negócio, com economia
de tudo, já que — algumas pessoas — precisam deixar o que lhe parece precioso mais perto e mais fundo em si.
a jovem percorreu as prateleiras com os olhos,
às vezes com as mãos.
seus brinquedos na infância eram inventados a partir de utensílios da cozinha
ou eram transparentes demais para serem vistos por quem estava do lado de fora da brincadeira.
foi quando a jovem encontrou uma boneca de fraldinha.
a trouxe pra perto,
não tinha um bom plástico, decerto derreteria se fosse levada à praia.
ainda assim — e talvez por isso — aquela boneca a enterneceu.
a jovem caminhou até o balcão, abriu a bolsa.
pagou e recebeu
a boneca em uma sacola
sem nenhuma palavra de agradecimento ou despedida. talvez o homem fosse um estrangeiro, ela pensou.
— até logo. — insistiu.
um estrangeiro, e ainda por cima tímido.
os passos da jovem ecoaram pela loja
que tinha ares
de igreja.
os santos e os brinquedos têm muito em comum, ela pensou. ambos nos ajudam a criar o mundo em que gostaríamos de viver. não este, nunca este. mas o Nosso, e ainda que seja impossível criar um lugar permanente, criá-lo por alguns instantes
já é a coisa mais bonita que podemos fazer com o Tempo.
*
no dia seguinte, quando a jovem entrou no quarto da mulher sem idade, encontrou a cama desarrumada
e sozinha.
perguntou para outra enfermeira que encontrou no corredor: onde está a mulher do leito 21?
— (ocupada) não sei.
a jovem percorreu os outros quartos, foi até o jardim onde muitas mulheres tomavam banho de sol.
procurou a sua — será que poderia dizer isto? — entre os rostos que pareciam se multiplicar só para lhe confundir.
até que avistou
primeiro o camisolão
ao Vento
depois a mulher sem idade
Nua,
e a beleza daquele corpo a surpreendeu.
a mulher girava esticando os braços numa vitalidade inebriante. abria a boca fechando os olhos, depois passava as mãos pelos cabelos.
a jovem enfermeira se aproximou, cuidadosa.
pousou a mão no ombro da mulher sem idade
a pele gelada
feito um mármore.
— eu te trouxe um presente. — a jovem sussurrou
como se pronunciasse a primeira palavra do dia depois de uma longa noite de sono, mas a mulher sem idade se afastou, Impenetrável, provavelmente não a reconheceu.
— é melhor deixá-la assim. — uma enfermeira que passava aconselhou. — logo ela se acalma e volta para o quarto sozinha.
a jovem assentiu pensando que a mulher sem idade não estava exatamente nervosa, talvez
apenas livre.
as duas enfermeiras se sentaram em um banco do jardim.
a que estava de passagem acendeu um cigarro
— quer?
a jovem olhou
para tudo o que nasce e morre ao redor do fogo
depois para a dança
estranha e
certamente bela
da mulher sem idade quando
a Chuva começou.
Aline Bei é escritora, autora de “O peso do pássaro morto” (Nós, 2017) e “Pequena coreografia do adeus” (Companhia das Letras, 2021).