Sérgio Abranches
Eu estava em frente à estátua de Jan Hus, na Staré Město, em Praga, absorto, pensando nas brutalidades que os fundamentalismos religiosos já produziram e continuam a produzir, quando a vi olhando intensamente para mim, curiosa. Imerso em meus próprios devaneios sobre a barbárie de todos os tempos, terminei por sentar-me na mureta que cerca a estatuária. Ela, sentou-se a meu lado. Olhei para ela e ela sorriu. Sorri de volta. Perguntei-lhe se era de Praga, ela disse algumas palavras em checo que não entendi. Mas, pelo gesto negativo com a cabeça, entendi que não falava inglês. Tentei francês e tive o mesmo gesto de negação.
Fez um gesto com a mão indicando que poderíamos tomar um chá. Fiz que sim com a cabeça. Sinalizou-me para acompanhá-la. Caminhamos até uma casa. Percebi, surpreso, que era sua residência. Indicou-me onde sentar. Preparou o chá meticulosamente, misturando ervas diferentes. Tomamos a infusão, quietamente. A sala tinha as paredes decoradas com reproduções renascentistas de rituais que não conhecia e alusões à alquimia. Ela sentou-se na banqueta do piano de meia cauda no canto da sala e começou a tocar a peça Macbeth e as Feiticeiras de Smetana. Achei lindo. E Smetana nem era um de meus compositores preferidos de peças para piano. Eu a olhei e a vi nua, o corpo alvo como uma página de papel em branco, os cabelos ruivos em chamas, contra o fundo negro do piano. As imagens nos quadros pareciam vivas. Senti um calafrio e perdi-me irremediavelmente de mim.
O frescor da tarde me abraçou como uma mãe carinhosa ao filho que retorna. Estava em uma região que não conseguia identificar. Algo me dizia que era na Bohemia. Eu sabia que era na Bohemia. Era primavera. Não tinha inteira noção de mim. Uma criança se aproximou, tomou minha mão e me conduziu por uma trilha, até singulares formações rochosas. Monólitos ancestrais. Por eles, imaginei que estava em Český Ráj, que fica a mais de uma hora de Praga. Não tinha a menor noção de como havia chegado à Trilha Dourada para o Paraíso. A criança me disse, em checo, que devia esperar até que a lua surgisse. Entendi sem entender. Não podia compreender o que a criança dizia em sua língua. Mas entendi. Ela se foi, sem mais palavras. Fiquei só, diante dos monólitos. Não me inquietei. Estava dominado por estranha calma. Uma paz que me impedia de ter pensamentos dolorosos.
A primavera é fria e eu não estava agasalhado. Não sentia o frio em mim. Havia um calor que irradiava de algum ponto de meu corpo e me mantinha aquecido. Quando a lua surgiu, revi a mulher muito branca e cabelos de fogo. Tinha os olhos faiscantes. Ela executava um ritual, num bailado sensual e sombrio. Tinha um gato tigrado de listras negras e amarelas na mão direita e uma adaga na esquerda. Abriu o corpo do gato com a lâmina afiada. Deixou que o sangue desenhasse figuras abstratas em sua pele alva. Olhou para mim e estendeu-me o animal, que sangrava muito. Tomei-o nas mãos, mas não havia ferimento algum e era um gato branco como neve. Ele arranhou-me os braços. Soltei-o e ele se perdeu no bosque. O sangue continuava a decorar o corpo da jovem. Perdi-me de mim.
Acordei assustado com o silêncio absoluto. Nenhum ruído. Escuro denso. Frio. Nenhum calor me aquecia. Nenhuma paz me acalmava. Puxei a manta de lã sobre meu corpo. Percebi, então, que estava nu. Cicatrizes desenhavam figuras abstratas em meu peito. Como aquelas desenhadas em sangue no corpo alabastrino da jovem ruiva. Vieram buscar-me.
Foram meses de tratamento em vão. Jamais consegui me lembrar do que se passara em Praga, nem explicar aquelas estranhas cicatrizes em meu corpo. Insistiam que eram resultado de autoflagelo, mas eu sabia não era isto. Elas tinham significado mais profundo e externo a mim. Jamais tive inclinações à automutilação. O ambiente asséptico, a maneira infantilizada como todos me tratavam, como se tivesse dois anos de idade, os remédios que meu organismo parecia rejeitar e saíam pelos meus poros, como suor frio. Sentia o cheiro deles em mim, nas cobertas do leito hospitalar. Sabia que não circulavam em meu organismo como esperado. Era como se tivesse anticorpos atentos, contra eles. Finalmente, fui liberado. Não identificaram sinais de que eu poderia fazer mal a mim ou a outras pessoas. Voltei para casa deprimido pela memória dos remédios e pela angustiante atmosfera da clínica.
Nunca me lembrei do que ocorreu em Praga, além do que aqui relatei. Ninguém me acredita. Dizem que é fantasia, delírio. Eu teria surtado. Mas eu sei que vivi o que vivi e, também, que vivi mais coisas do que sei. Sempre que ouço Smetana, vejo nitidamente a figura da jovem nua, pele muito alva, desenhada por fios vermelhos de sangue e cabelos ruivos. Ela olha para mim e eu me perco de mim por horas, dias a fio.
Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor, autor de “Presidencialismo de coalizão” (Companhia das Letras, 2018).