Alexandre Pilati
I
Em um ensaio que trata da leitura no Ulisses, de James Joyce, o escritor argentino Ricardo Piglia remete a “duas maneiras diferentes de ler e de usar um livro, dois modos de apropriação dos textos”[1]. De acordo com ele, a relação com um texto pode ser estabelecida pela análise dos “problemas de construção” ou pela análise dos “problemas da interpretação”. Daí resultam, em suas palavras, “duas maneiras diferentes de falar da literatura”. Nesse ensaio sobre Joyce, interessa a Piglia, na esteira de dois críticos russos, Victor Sklovski e Boris Eikhenbaum, pensar o texto “em função de como ele foi construído”, considerando especificamente o uso que o autor irlandês faz da Odisseia, de Homero, como “procedimento de unificação da trama” na estruturação do Ulisses. Piglia, assim, descarta “a proliferação de interpretações” que o poema homérico dispara em direção ao leitor da ficção joyceana e se concentra nos procedimentos de composição da obra.
Joyce é também um poeta da fala, no sentido que abordaremos a seguir. Entretanto, não é por esse motivo que ele é recuperado no preâmbulo deste ensaio sobre a relação entre a fala e o poema. Interessa aqui o modo como Piglia invoca, para a leitura do Ulisses, o modelo de análise que se volta para os problemas da construção do texto literário. Digamos, a esse título, que Piglia procura se situar, na leitura da ficção de Joyce, do ponto de vista do produtor, que precisa ponderar escolhas e mobilizar determinadas atenções aos materiais de que se compõe um romance. Dessa forma, o crítico argentino descarta momentaneamente a dimensão dos efeitos da ficção no leitor, ou dos resultados da composição literária considerada como todo relativamente autônomo.
A observação das relações entre a fala e a poesia será aqui realizada, prioritariamente, a partir desse ponto de vista no qual insistiu Piglia em sua leitura do Ulisses. É o ponto de vista dos poetas como criadores este ensaio prioriza, sendo apenas secundariamente mobilizado o olhar crítico sobre os efeitos estéticos da fala no poema. O papel da fala na construção da poesia é o nosso cerne temático. Isto é: a fala como um dos problemas da construção do poema.
II
O brasileiro Paulo Leminski, além de grande poeta, foi um grande publicitário da poética. Foi, em primeiro lugar, propagandista da sua própria concepção de poesia, que era, ao mesmo tempo, muito ampla e muito idiossincrática. Tal sintoma se reflete de modo exemplar no poema “Limites ao léu”, de La vie em close[2]. Espécie de súmula dinâmica de referências e de ambivalências, o poeta Leminski traduz a si mesmo para o leitor a partir da citação de cerca de vinte nomes de poetas e pensadores a respeito da poesia. Todas são, em alguma medida, citações transcriadas pelo poeta paranaense, cujo trabalho se centra na refuncionalização das palavras dos autores citados, pautada no expediente, muito sintonizado com sua época, de recortar e colar, em contrastes, elementos de tempos e de extrações literárias e filosóficas distintas. Tudo termina submetido às palavras do próprio Leminski, que, no último verso, considera poesia: “a liberdade da minha linguagem”.
A afirmação leminskiana, que reside na ideia de poesia como sonho da liberdade de uma linguagem individual e com a qual o poema se encerra, é contraditoriamente desmentida pelas frases que antecedem a conclusão do autor. Nesse desmentido, que empresta graça e vida ao conjunto, sublinhando o valor literário do texto, está o fato de que é impossível produzir poesia apenas acreditando na liberdade das palavras e no mítico simulacro de uma “linguagem individual”. A poesia, com sua língua própria, está submetida a uma aleatoriedade de limites, constituídos socialmente e que existem independentemente da consciência de seus criadores. Essa é a matéria do poeta, a qual sugere uma possível leitura crítica do processo compositivo do poema a partir da noção de “limites ao léu” proposta no título. Lido sob esse ângulo, estamos diante do incrível caso de um poema em que o sentido da construção caminha no sentido contrário do que poema deseja deixar, talvez ambiguamente, como sugestão final de sua interpretação. A língua individual não existe sem outras línguas, que a precedem na economia do poema e na vida real. O desejo de lançar ao léu os limites faz com que estes retornem e condicionem aleatoriamente o poema.
Em “Limites ao léu”, a definição plural de poesia nos remete, entre outras, a uma citação de Goethe, que teria definido a poesia como “fala do infalável”. No contexto do poema de Leminski, essa citação atribuída a Goethe indica uma ambiguidade com relação ao assunto de que vamos nos ocupar majoritariamente neste texto: a relação entre a fala, concebida como um dado da realidade que será transfigurado pelo trabalho poético, e o poema, que é o resultado desse processo, que eleva a dinâmica do real a um outro nível de coerência submetido às leis da beleza, distintas das leis do real.
Mais uma vez nos deparamos com a contradição, que aqui refere-se ao fato de, por um lado, podermos tomar o “infalável” como algo atinente ao “impossível de se dizer”, o que, portanto, levaria, inexoravelmente, a poesia ao terreno da insuficiência. Sob esse prisma, a “fala do infalável” seria “a fala impossível”. Por outro lado, podemos considerar o “infalável” como a conquista da poesia, ou seja: ela consegue dar a ver o que a fala não consegue dizer. Então, nesse caso, a poesia seria a “fala do inflável” porque teria a capacidade de dizer, criando, com seus mecanismos próprios, uma atmosfera de possibilidades de suficiência, que é condição essencial do literário. De qualquer modo, figurar as possibilidades do dizer ou dar forma à impossibilidade de dizer levam-nos a considerar o poeta, do ponto de vista da produção, como alguém consciente de seus limites, os quais são, também, à sua maneira, ingredientes da composição do poema, especialmente se nos concentramos na tradição literária moderna. Adicionalmente, vale lembrar que em matéria de literatura nenhum limite ou potência é meramente individual, pois as ferramentas (entre as quais está a fala) de que se vale o poeta são constituídas social e historicamente.
III
O âmbito a que nos leva o poema de Leminski, a partir da citação atribuída a Goethe é aquele que o poeta alemão procurou palmilhar, com suas obras literárias e suas reflexões estéticas. Este é o âmbito das relações entre poesia e verdade, entre poesia e natureza, entre poesia e realidade. E já que Leminski nos trouxe a Goethe, vale pensar a “fala do infalável” nos termos de algo que Paul Eluard discutiu em um texto muito conhecido, que ajuda a melhor perceber a tensão entre poesia e fala do ponto de vista da composição. O poeta antinazista francês remete a Goethe na argumentação que desenvolve em “Sobre a poesia de circunstância”, texto de 1952, no qual cita textualmente o autor do Fausto:
O mundo — disse Goethe — é tão grande, tão rico, e a vida oferece um espetáculo tão diverso que nunca faltarão temas de poesia. Mas é necessário que seja sempre poesia de circunstâncias, dito de outra maneira, é preciso que a realidade brinde a ocasião e a matéria. Um caso singular se converte em geral e poético precisamente pelo fato de que o trata o poeta. Meus poemas são todos poemas de circunstâncias. Inspiram-se na realidade, sobre ela se fundam e repousam. Nada tenho que fazer com poemas que não se baseiam em nada. Não se diga que a realidade carece de interesse poético; um poeta triunfou na prova precisamente quando seu espírito sabe descobrir em um tema trivial algum aspecto interessante. A realidade deve brindar o motivo, o ponto de partida, o núcleo propriamente dito; mas é tarefa do poeta formar com isso um todo que seja belo, animado.[3]
Os trechos grifados apontam para o essencial da presente discussão, pois neles situa-se a perspectiva de Goethe acerca da tensão entre o poema e realidade. A poesia nasce, diz ele, das circunstâncias mais próximas da realidade, da contingência limítrofe do poeta, do que está próximo, do que está ao alcance do produtor do poema. Diz Goethe que os poemas se fundam e se baseiam na realidade, o que quer dizer, essencialmente, que os poemas não são a realidade, embora seja impossível fazer um poema sobre nada. O “caso singular” é sempre “tratado pelo poeta”. O todo “belo e animado” (isto é: o poema como resultado do trabalho sobre o real) deve “brindar”, por sua vez, o “ponto de partida”. Saber enxergar bons motivos, ainda que triviais, na realidade e convertê-los em “todos” relativamente independentes consiste no essencial do trabalho do poeta. Do ponto de vista da construção do poema, trata-se de encarar, como trabalhador da palavra, um dito antigo, mas extremamente pertinente, referido à “diferença entre poesia e história”, conforme a Arte Poética, de Aristóteles: o historiador, independentemente da forma como utiliza a linguagem, trata de “dizer as coisas que aconteceram”, o poeta, de dizer “as que poderiam acontecer”[4].
Esta remissão a Aristóteles, que na esteira desta argumentação deriva de nosso encontro com Goethe, tem todo sentido se pensamos que, no processo histórico de constituição da poesia moderna e contemporânea, consolidou-se entre os poetas a centralidade do trabalho sobre os dados circunstanciais da fala, que precisam, como elementos da realidade, ser convertidos (ou seja: transfigurados) em funções específicas da autonomia relativa do poema. Hermenegildo Bastos indica de maneira precisa a dialética arte e vida: “A poesia é mimese, mas não está presa ao real, é livre.”[5] A aparente contradição é o constituinte inescapável da dialética arte / vida. Do ponto de vista dessa relação entre poesia, circunstância e história, referimo-nos aqui à tensão que se estabelece no processo criativo entre o que é efêmero (fala) e o que deseja permanecer (poema); entre arte (poema) e vida cotidiana (fala); entre espontaneidade (fala) e forma artística (poema).
Em suma, poderíamos traduzir essas tensões, que afinal são reverberações de uma só (arte / vida), da seguinte maneira: quando observa a fala circunstancial, o poeta se aproxima do cotidiano para tentar, através do trabalho poético, dar forma ao que o próprio cotidiano não diz espontaneamente. Ou, dito de outro modo: o cotidiano exprime-se na fala, mas nessa expressão não supera o circunstancial, pois o permanente é o resultado do trabalho peculiar de interpretação do mundo pela arte. Com isso queremos dizer que o cotidiano se exprime na arte, mas não imediatamente, não diretamente. No poema, o cotidiano aparece referido a uma experiência de totalidade que suplanta (ou intenta suplantar) a experiência circunstancial, a contingência específica do poeta. A vida da poesia deriva da vida do poeta, mas, como forma e força coletiva, ela aponta para além desta individualidade. Por isso, em alguma medida, a poesia é uma “fala ao revés da fala”, por sua disposição de problematizar o familiar, conforme iremos tentar refletir doravante.
No último livro que publicou em vida, Em alguma parte alguma, o poeta maranhense Ferreira Gullar armou o problema, que o acompanhou durante toda sua trajetória literária, no belo meta-poema “Falar” da seguinte maneira:
Falar[6]
A poesia é, de fato, o fruto de um silêncio que sou eu, sois vós, por isso tenho que baixar a voz porque, se falo alto, não me escuto. A poesia é, na verdade, uma fala ao revés da fala, como um silêncio que o poeta exuma do pó, a voz que jaz embaixo do falar e no falar se cala. Por isso o poeta tem que falar baixo baixo quase sem fala em suma mesmo que não se ouça coisa alguma.
O poema trata da relação entre arte e vida considerando a fala como elemento mediador fundamental. Oposta a ela está, no texto, o silêncio. Entretanto, vemos que, da perspectiva de Gullar, o silêncio não é exatamente a ausência da fala. O silêncio é aquilo que, no ato da fala cotidiana silencia-se. Por outro lado, o silêncio é também aquilo que constitui os seres, é aquilo que do fundo de nós pede forma de palavra e que não está necessariamente dito no cotidiano. A poesia, num certo sentido, é “fala ao revés da fala” porque um poema poderá deixar falar o silêncio que nos humaniza, o silêncio que somos nós, também no cotidiano. O silêncio que é abafado em meio ao tumulto de tantas falas no cotidiano, incluída a do próprio poeta. Produzir o poema não significa negar a força da fala, mas saber ouvir o valor humano por trás do silêncio que a fala cotidiana abafa.
Não nos desviamos, portanto, da trilha que nos conduz à dialética arte / vida. A abordagem do assunto nos lembra Cacaso e o seu “Na corda bamba”: “”Poesia/ Eu não te escrevo/ Eu te/ Vivo/ E viva nós!”. Mais do que afirmar um espontaneísmo inocente, o poema de Cacaso funciona como comentário crítico e prototeórico ao cerne das preocupações de criador do poeta. Cacaso é o poeta que encara de frente, mas não de modo inocente, o problema da diluição da poesia na gratuidade. Se a gratuidade do valor poético pode se pautar no trivial da vida, isso não resulta necessariamente na diluição, ou escamoteamento, da contradição entre arte / vida. Muito pelo contrário, ela se presentifica no poema como questão da própria vida, alçada à condição de poema. Por isso Cacaso diz “eu te vivo”. Num de seus exercícios de reflexão sobre a poesia brasileira, estabelecendo um diálogo com o modernista Mário de Andrade, Cacaso provoca:
O modernismo, para quem a criação é igual à realização, em ato, de um ideal, é, portanto, um esforço empenhado em prol da gratuidade, da autonomia das coisas e dos valores, um jeito de constranger para que a espontaneidade pudesse aflorar sem constrangimento, o que em si já configura um paradoxo.[7]
É a esse grau de paradoxo que conduzem os poetas quando de propõem a tornar elemento de composição a fala como porta aberta para a rua, a circunstância, a vida que flui espontânea e imperfeita, desejando, todavia, atingir a construção de um sentido referido à totalidade, que a poesia pode ajudar a iluminar. Tratando do que “poderia acontecer”, a tarefa da poesia é escapar à imediatez do cotidiano, para depois a ele retornar com “pessoas e façanhas concretamente simbólicas”, como diria Alberto Manguel.[8]
IV
É possível fazer uma história da poesia moderna e contemporânea a partir da sua relação com a fala, considerada como uma das mediações fundamentais da interação entre cotidiano e poesia. Na literatura brasileira, haverá certamente casos exemplares entre os modernistas, que trataram de desrecalcar o Brasil oficial, recuperando na fala popular a matriz de uma expressão nacional vinculada a tradições reativas ao beletrismo conservador dos parnasianos ou à retórica esvaziada de vida dos simbolistas. Talvez seja Manuel Bandeira um dos mais bem sucedidos realizadores da apropriação da naturalidade da fala cotidiana pela poesia. Oswald de Andrade, com disposição crítica e satírica, também fez desse um dos principais vetores da renovação proposta em suas concepções de “antropofagia” e de “poesia pau-brasil”. Todos que escrevemos em português do Brasil somos tributários desse esforço para que a poesia trabalhasse a fala testando os limites e possibilidades da naturalidade semântica, sintática, fonética, lexical.
Sob o ângulo da reflexão crítica empenhada, é a “Gramatiquinha da fala brasileira” de Mário de Andrade, projeto que restou inconcluído, o principal exemplo desse esforço. Ciente dos limites da empreitada, o poeta modernista afirmava: “não apresento o meu trabalho como obra técnica, porém obra de ficção”[9], postulando, por outro lado, que haveria uma intenção primacial da tarefa: a de perseguir as pegadas linguísticas deixadas pela fala brasileira, a qual, ainda que individualizadas em cada falante, são dotadas de certos traços convergentes que apontariam para uma “psicologia da fala brasileira”.
Estudioso da música, Mário entende, nos manuscritos que compõem a “gramatiquinha”, a fala como vinculada ao corpo, aos seus ritmos, à sua vivência. Há, portanto, questões que abrangem algo além de regras, prescrições e nomenclaturas em seu projeto “gramatical”. Antes de qualquer coisa, a “gramatiquinha” é uma investigação literária sobre poesia e realidade nacional, que se vale da fala como mediação fundamental.
Já que estamos no plano das intersecções com a música e a canção, convocadas aqui pela noção de fala trabalhada por Mário de Andrade, não custa lembrar que na música popular brasileira o trabalho do cancionista se apoia exatamente nessa dialética entre fala (efêmera) e composição cancional (perene). Essa dialética alimenta-se da tensão entre o efêmero e o permanente, que é fundamento daquilo que as canções expressam esteticamente a partir do real. Luiz Tatit, considerando exatamente esses aspectos como nucleares para o valor estético da “dicção do cancionista brasileiro” afirma: “A grandeza do gesto oral do cancionista está em criar uma obra perene com os mesmos recursos utilizados para a produção efêmera da fala cotidiana” [10]. E, na esteira de Mário de Andrade, referência para seu trabalho, afirma que “não há modelo único de fala” e que “a fala pura é, em geral, instável, irregular e descartável no que tange à sonoridade”. O trabalho do cancionista (como poeta da voz) consistiria em conferir estabilidade, regularidade, perenidade às condições instáveis mas esteticamente produtivas da fala. Um trabalho assemelhado ao do poeta que recolhe as falas como matéria de construções que suplantam as contingências imediatas. Muitos poemas, assim como muitas canções, em sua relação com a fala, sonham a construção da naturalidade, que Tatit irá definir como “a impressão de que o tempo da vida é o mesmo tempo da obra”.[11]
A obra de Ferreira Gullar, tão importante para as ideias elencadas neste ensaio alimenta-se em grande medida da articulação dessa tensão entre a “naturalidade” e o “artifício”, ou, dito de outro modo, da construção do artifício como impressão de naturalidade. Na mesma linha, encontramos a obra de Francisco Alvim. “QUER VER? // Escuta”[12] é um dos micropoemas mais famosos do autor. Nos dois únicos enunciados de que se compõe esse texto (título e um verso solitário), está gravada, na avaliação de Roberto Schwarz, “a poética do livro, mais complexa do que parece, desde que notemos a cor local da inflexão.”[13] O poema, ao recolher a fala da rua, expõe o método de interpretação da realidade do poeta, que utiliza a fala como chave para interrogar e dar figura literária aos dilemas da sociabilidade brasileira. Todavia, é em moldura de dilema que se percebe a tensão entre fala e poema na obra de Alvim. Basta ler com atenção os livros Elefante e O metro nenhum para verificar que a poética de Francisco Alvim não se restringe ao que seria o procedimento da captação da fala pelo ritmo do poema, construindo a ilusão de que não há autor nem edição dos enunciados e radicalizando a noção de naturalidade acima referida.
Tomada como problema compositivo, a tensão entre fala e poema evidencia-se em Alvim pela oscilação dinâmica entre a máxima impressão de naturalidade e máxima impressão de artificialidade. Essa é a raiz da poética. Sobre essa matéria, Vilma Arêas disse em texto para a orelha do Elefante: “as referências contextuais, quase didáticas sustentam o voo da figuração, essa nuvem (“O voo das sombras/ gira em torno de uma coluna/ sonora, o poema”), sem que um polo se reduza ao outro”[14]. Na contradição figuração X contexto, está o fio condutor que une os dois livros, que, no entanto, guardam peculiaridades que pedem especificação crítica. A poesia de Francisco Alvim teria, no balanceio dessa contradição, freios e contrapesos específicos, que um estudo de maior atenção deveria empenhar-se em descrever, apresentando a lógica própria de seu funcionamento. As duas faces dessa poesia (que Zuca Sardan nomeou como a Face Preta, trágica, lírica, pedregosa; e a Face Amarela, a “da torcida”)[15], mantendo-se vivas e intercambiáveis, sob novas leis, de um livro a outro, indicam, de modo inconteste, uma poesia capaz de refazer-se intensificando o próprio projeto, refratária que é à frivolidade, ao descompromisso, à dicção feliz e anódina. As obras de Alvim são mananciais de vínculo com a vida, em que a poesia radicalizou a efemeridade para apagar as circunstâncias e projetar nosso olhar à totalidade das relações sociais que as falas ecoadas nos poemas pressupõem.
V
Para apurar a força transfiguradora do poema, em relação aos dados que recolhe da fala (ritmo, sintaxe, sonoridades, assuntos, perspectivas), é preciso considerar que a passagem da realidade à forma estética implica um processo de redução estrutural. No caso do poema, como já vimos anteriormente, trata-se de limpar a matéria das hiper determinações da circunstância, a individuação que é a própria contingência do poeta empírico. Escrever um poema é transpor a contingência da individuação empírica para a individuação lírica, a qual intensifica a universalidade do sentimento, da perspectiva sobre a vida, da relação com a linguagem. Todo poema, nesses termos, intenta realizar um processo de desindividualização que pressupõem uma nova individuação noutro plano. Isso quer dizer que é possível que muitas vozes estejam falando na voz do eu poético. Mais uma vez, cuida-se da manutenção de contradições e não da diluição do eu vivo em um conjunto de vozes abstratas, nem tampouco de uma disposição exageradamente restritiva à coincidência entre a personalidade individual do poeta e a figura construída no poema. A voz do poeta não importa individualmente, mas como forma estética que dá novo grau de tensão às contradições sociais. Esse é o interesse estético de transpor a fala para o poema.
Discutindo essa questão nos termos dos processos de ficcionalização da voz poética, Fábio Cesar Alves e Vagner Camilo afirmam que:
mesmo um eu-lírico cuja voz se apresenta aparentemente como una pode conter uma multiplicidade de outras vozes e pontos de vista, o que descarta a ideia de uma voz “pura”, “singular” ou “impessoal”. […] Nesse sentido, o termo “voz” deve ser entendido em sentido amplo, como um eixo em torno do qual diferentes pontos de vista se articulam no texto poético”.[16]
Digamos, portanto, que o processo a que os autores aludem pode ser entendido como o da transfiguração da “fala” do cotidiano em “voz” do poema. Quando se trata, pois, de “voz” dentro de um determinado poema remete-se a um eixo articulador de pontos de vista, pois a eficácia estética não estaria restrita à univocidade, à particularidade, à singularidade de uma única fala. A força literária de um poema nunca depende de apenas replicar a imediatez. Não é a equivalência entre o eu do poeta e eu poético que faz a poesia viver, mas a dinâmica de afastamentos e aproximações que o diagrama poético põe em movimento. Assim, a fala tornada voz do poema configura-se como espaço das contradições, possivelmente reveladoras, por exemplo, das dinâmicas sociais que estruturam o cotidiano (a atmosfera da fala).
Salvo engano, esse conjunto de movimentos se estabelece de modo muito vivo no poema “em casa”, de Danielle Magalhães, jovem poeta carioca. O texto coloca em primeiro plano o problema da tensão entre a fala e o silêncio, numa situação de isolamento e abandono que contrasta com a resistência, a sensibilidade e a esperança da personagem do poema. Assim, a obra assume as possibilidades da fala e do próprio poema de modo problemático, para si e para os outros. Na revelação da altíssima consciência do instante, o poema se abre à tensão entre pontos de vista, que falam, no poema, para além do que vocaliza a autora, personagem da cena indicada no texto:
em casa[17]
há um abismo entre o que eu queria falar e o meu modo de quebrar o silêncio há uma ânsia de desistir de falar desisto de procurar sua voz onde está seu pensamento quando você está a menos de um palmo de distância um abismo minha voz e o que treme aqui quantas quebras há em suas mãos quantas línguas partidas quantas terras arrasadas eu vou catando as sobras dos seus desastres por aí por quanto tempo a vida eu me pergunto por quanto tempo a vida é viver tentando em busca à espera quem foi que te fez assim e por que eu sinto todos os seus anticorpos todos que eu nunca tive a resistência dos seus membros a postos se virando sozinhos pela cidade enquanto todas as suas vísceras foram deixadas em casa onde você esqueceu de falar não há nenhuma voz que te lança no mundo você não está em nenhum lugar por onde você pisa você continua em casa nenhuma voz te lança no mundo você com seu mapa sempre sabe por onde ir suas pernas nunca estão perdidas sempre sabem como voltar não há resto nenhum seu pelo mundo há todas as minhas partes entre o que eu queria falar e o meu modo de quebrar há um abismo em que caí tentando procurar suas partes e não acho acho que morrerei em casa escutando o silêncio
Impossível não reparar, do ponto de vista da construção, o modo como os versos se estendem fazendo um uso produtivo e (auto) crítico do enjambement. A poeta se coloca na posição de quem fala e representa em seu poema o momento da enunciação em situação de solidão. Com esse procedimento, o texto demonstra o quanto a poeta está vivenciando autenticamente o dilema entre o silêncio e a fala, buscando a naturalidade (tempo da vida igual a tempo da obra). A poesia evidencia-se como problema da expressão humana e o modo de quebrar o silêncio assumido pelo texto é problemático, pois, em certa medida, trai as palavras para deixar sugerido o que nem elas conseguiriam falar, se apenas transpostas imediatamente do cotidiano para o texto. Por um lado, o poema de Danielle Magalhães se inicia indicando a poesia como insuficiência, isto é, como “fala do infalável” no sentido da frustração. Por outro lado, todavia, o percurso que revela o esforço corporal do exprimir-se, marcado nos versos que transigem recortando a sintaxe, é uma revelação do outro sentido da “fala do infalável”: o da possibilidade de dizer, embora a interlocução esteja interditada, como indica a cena principal do poema. O isolamento da personagem não se resolve. Ao contrário, ele é um dado estruturante do poema, construído como reflexo da consciência que ela tem da impotência da palavra (“o abismo”. Todavia, a partilha da experiência e a sua percepção, lúcida e desencantada, retiram a poeta e o poema da pura frustração. Sob esse aspecto, não há dúvida, muitas vozes constituintes do processo social estão reveladas a partir do eixo estético que é a voz da autora.
Caso semelhante acontece em “Fala”, recolhido em Transposição, o primeiro volume de poemas de Orides Fontela. Nesse texto, uma voz impessoal faz afirmações de caráter crítico acerca do processo de transposição da fala ao poema. A poeta registra algo como o instante que antecede a expressão, o momento da reflexão sobre o que pode e o quanto dói a palavra. Estamos dentro do instante anterior à enunciação, diferentemente do poema de Danielle Magalhães. “Dizer” aqui é talvez a maior dificuldade do ser que fala e a palavra, como manifestação do coletivo que precisa ser tratada por alguém que deseja se expressar, é motivo de sofrimento, pois ela está submetida à “consciência demais do ser”. Em termos de referencialidade, a voz se desdobra entre dois “sujeitos”: “tudo” e “nós”. Se os dois termos são indicativos de coletividades, possuem, no poema, funções diferentes. A “tudo” (o todo, a vida) atribuem-se características; “nós” (na verdade “nos”) somos os que sofremos com a crueldade do real que despedaça e da palavra que fere.
Fala[18]
Tudo será difícil de dizer: a palavra real nunca é suave. Tudo será duro: luz impiedosa excessiva vivência consciência demais do ser. Tudo será capaz de ferir. Será agressivamente real. Tão real que nos despedaça. Não há piedade nos signos e nem no amor: o ser é excessivamente lúcido e a palavra é densa e nos fere. (Toda palavra é crueldade.)
As tensões entre o real e a palavra poética, assim, pensadas sob o ângulo da voz que as avalia, dão corpo a um meta-poema que, revela um método compositivo que se pauta na economia de palavras, o que intensifica o sentido da “dificuldade de dizer”. Para defender-se da palavra que fere, a poeta escolhe a economia vocabular como forma também de afrontar o custo das afirmações que poderia fazer em relação ao todo, ao “tudo”. Esse poema sem eu-lírico explícito e sem referências contextuais de cotidianidade apresenta, a seu modo, uma voz humanizada, concreta, porque encarnada nos dilemas que as palavras apresentam. Trata-se de um eu sem aparência e sem contexto imediato, que se pretende essência, figura condutora dos processos mais difíceis quando trata de expressão do humano nos termos da linguagem. Como no poema de Danielle Magalhães, aqui o texto se constitui como “fala do infalável”, como possibilidade e como limite, mas também e, sobretudo, como “fala ao revés da fala”, capaz de resgatar a crueldade muitas vezes subsumida pela fala, que retorna à inteligibilidade do leitor pela palavra que é densa e fere. Apesar das dificuldades expressas no tratamento das dicotomias fala/silêncio, fala/palavra, os poemas não são depressivos, graças à luta das poetas gravada na expressão poética.
Digamos, afinal, que a verdade dos poemas de Orides Fontela e de Danielle Magalhães, deriva de assumirem a exposição da dificuldade da fala como dado incontornável da maneira segundo a qual existimos, conhecemos o mundo e nos relacionamos. Se esse é o dado mais íntimo dessas formas líricas, ele tem uma conexão profunda com o mundo social, que não é explicado por eles, mas que está implicado, sedimentado, nos seus elementos de fatura. É aí que efetivamente a poesia se constitui como uma “fala ao revés da fala”, uma “fala a contrapelo”.
VI
Haverá, então, um outro significado contemporâneo para a concepção da poesia como “fala ao revés da fala”, como forma estética que escuta o que o cotidiano silencia. Pensemos na contemporaneidade. Estamos em um tempo em que somos convocados, a todo momento, a nos expressar, a falar; sobre qualquer assunto temos, em princípio, a liberdade de dizermos o que quisermos numa arena pública mediada pelas tecnologias de interação remota. Basta abrir o próprio perfil na rede social que a máquina interpelará o sujeito, em tom de obrigação: “no que você está pensando?”. Na verdade, a pergunta pode ser traduzida com apenas um verbo no imperativo: “Fale!”. Um único verbo que pressupõe: “Fale qualquer coisa, esta é a nossa mercadoria e se você chegou até aqui precisa entregá-la. É o que vamos vender, é aquilo em que a sua fala se transformou hoje e é por isso que você vale para nós. Portanto, fale, pois o silêncio não vale nada. Isto é: em silêncio, você pouco vale.”
Esse é o imperativo, o comando do sistema totalitário que Pier Paolo Pasolini tão bem soube descrever como fascismo de consumo. Não se trata apenas de uma solicitação para que os sujeitos se expressem, mas para que se expressem como não-sujeitos, como mercadorias. Essa é a condição que liga as manifestações do homem ao mundo do capitalismo tardio, no qual a cultura se tornou “a natureza” e não apenas “uma segunda natureza”. A linguagem das mercadorias é grandiloquente e prolixa; o silêncio humanizador, cada vez mais inaudível.
As mercadorias não descansam, precisam falar o tempo todo, vinte quatro horas por dia, sete dias por semana, para serem operacionais à maquinaria digital que, ao mesmo tempo, controla, reprime e estimula desejos e produz angústia, medo e indiferença. Esta é a verdade da “era da comunicação”, da “era digital”, da fala massiva a serviço de um poder sem rosto que coloniza o inconsciente e o cotidiano. Aqui o silêncio está quase abolido e o tempo da estética, da leitura, do contato com a vida exprimida pelas palavras literárias é exceção, privilégio ou requinte. Este é, pois, o “mundo 24/7”, sem sono e sem silêncio, segundo a definição formulada por Jonathan Crary (2014), num ensaio sobre a missão desumanizadora e desmobilizante do capitalismo contemporâneo:
Um mundo 24/7 é desencantado, sem sombras nem obscuridade ou temporalidades alternativas. É um mundo idêntico a si mesmo, um mundo com o mais superficial dos passados, e por isso sem espectros. Mas a homogeneidade do presente é um efeito da luminosidade fraudulenta que pretende se estender a todo mistério ou ao desconhecido. Um mundo 24/7 produz uma equivalência aparente entre o que está imediatamente disponível, acessível ou utilizável e o que realmente existe.[19]
A experiência humana contemporânea, marcada por uma intensidade vazia de vida, é a rotina diuturna do capitalismo contemporâneo. A poesia confere às palavras recolhidas nas falas dos homens e mulheres deste mundo a obscuridade e a temporalidade alternativa que escapam ao mundo da mercadoria. Assim, a poesia seria capaz, como já vimos pouco antes em Orides Fontela e em Danielle Magalhães, de expor o lume fraudulento da homogeneidade pretendida pelo poder totalitário do capital, que deseja nos silenciar através do estímulo à fala, entendida como redução de nossas capacidades humanas à mera condição de mercadorias.
Lendo outra vez o poema de Gullar, podemos, então, atribuir um novo significado à poesia como “fala ao revés da fala”. O modo como a expressão está construída certamente lembrará, mesmo aos leitores ocasionais ou distraídos de Walter Benjamin o gesto de “escovar a história a contrapelo”[20], necessário a quem deseja pensar a história sob outro ponto de vista, que dialeticamente inclua os conflitos de classe e não seja aderente à perspectiva dos vencedores.
Quando recupera o mundo cotidiano e esforça-se por referi-lo em seus dilemas, buscando uma verdade total da expressão, o poeta pode disparar, ainda que à revelia de sua ideologia política, um olhar a contrapelo sobre a história. Isto quer dizer a poesia ocorre quando se funda na contracorrente da voga, ou que, entre outras coisas, ela pode transformar a pletora de falas em algo que se volte contra a fala cotidiana, descartável, vazia, contingente, precária, esteticamente deprimida que é estimulada pela hegemonia do capital midiático digital. Assim a poesia será ocasião para construir algo que se aproveite do potencial político do que a fala como mercadoria silencia. Essa é a tarefa da poesia para hoje: ser escrita contra a mercadoria, contra os esquemas totalitários do mundo do consumo e também contra a tradição conformista dos beletristas. Estes, de um lado e de outro, sobrevivem graças à sua inarredável simpatia pelos vencedores, enquanto a poesia deveria sempre tomar partido da vida, e confirmar a perspectiva dos que sofrem o mundo.
A estética da mercadoria retira seu fôlego de escamotear as relações entre trabalho humano e produto; a estética do poema, por sua vez, alimenta-se da expressão da contradição entre arte e vida. Por isso é capaz de falar a contrapelo e, através do silêncio, pode gritar o seu vínculo radical com a humanidade.
Alexandre Pilati é poeta, crítico literário e professor de literatura na UnB, autor de “Tangente do cobre” (Laranja Original, 2021).
[1] PIGLIA, Ricardo. “De que é feito o Ulisses?”. In: _______. O último leitor. São Paulo: Cia das Letras, 2006. p. 157.
[2] LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 10.
[3] GOETHE citado por ELUARD, Paul. “Sobre a poesia de circunstâncias”. Revista Princípios nº 10, abr/1985, p.: 55-58. Grifo meu.
[4] ARISTÓTELES. Sobre a arte poética. Trad. Antônio Mattoso e Antônio Queirós Campos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
[5] BASTOS, Hermenegildo. “Água Brusca: Utopia e ameaça na poesia de M. Bandeira”. Revista Interdisciplinas. Ano IV, V.8, jan-jun de 2009, p.83-97
[6] GULLAR, Ferreira. Em alguma parte alguma. In _______. Toda poesia. São Paulo: Cia das Letras, 2021. p. 452.
[7] BRITO, Antônio Carlos de. Não Quero Prosa. Org. Vilma Arêas. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.
[8] MANGUEL, Alberto. Notas para a definição do leitor ideal. São Paulo: Edições SESC SP, 2021.
[9] ANDRADE, Mário de. A gramatiquinha da fala brasileira. Série Manuscritos Mário de Andrade, IEBUSP.
[10] TATIT, Luiz Augusto de Moraes. O cancionista. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 11.
[11] Id., ibid.., p. 18.
[12] ALVIM, Francisco. Elefante. São Paulo: Cia das Letras, 2000. p. 76.
[13] SCHWARZ, Roberto. “Um minimalismo enorme”. In: _______. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Cia das Letras, p. 112.
[14] AREAS, Vilma. Orelha in ALVIM, Francisco. Elefante. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
[15] SARDAN, Zuca. “Galhofa-fria” in. ALVIM, Francisco. O metro nenhum. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
[16] CAMILO, Vagner e ALVES, Fábio. C. “Monólogo dramático e ficcionalização da voz poética: pressupostos teóricos”. In.: PILATI, Alexandre et ali (Org.). Monólogo dramático e outras formas de ficcionalização da voz poética. Campinas/Brasília: Pontes Editores/Editora Universidade de Brasília, 2020. pp. 13-14.
[17] HOLLANDA, H. B. de (Org.) As 29 poetas hoje. São Paulo: Cia das Letras: 2021. p. 102.
[18] FONTELA, Orides. Transposição. In _______. Poesia reunida (1969-1996). São Paulo/Rio de Janeiro: CosacNaify/7Letras, 2006. p. 31.
[19] CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. sp.
[20] BENJAMIN, Walter. “As Teses sobre o Conceito de História”. In: Obras Escolhidas. Vol. 1, p. 222-232. São Paulo, Brasiliense, 1985.