Marcela Dantés
— Que horas ele volta?
— Não sei se ele volta hoje, filho.
Eu disse aquilo querendo dizer não sei se ele volta algum dia e sabendo que ele não voltaria nunca. Sorrindo, mas querendo morrer.
Não é como se ele não quisesse voltar, ele era louco naquele menino, ele era louco na gente, mas já fazia muitos dias de uma história esquisita e eu não acreditava naquela conversa de bicho que encontrava a família a qualquer custo, de quatro patas que atravessavam a cidade no faro e na raça, de sobrevivência que parece novela e ele era só um cachorro.
Um bom cachorro, o nosso cachorro, mas só um cachorro, um comum: o pelo cinza e branco que se encrespava em pedaços improváveis, como o encontro da cauda com o corpo ou a parte de baixo do focinho bastante comprido. A orelha esquerda, só ela preta, como quem diz ei, olha pra mim, eis aqui uma orelha qualquer coisa diferente do resto, qualquer coisa que mereça um minuto da sua atenção quem sabe você não se abaixa e me faz um carinho bem aqui, nessa orelha mesmo? Os olhos comuns de um cachorro que aprendeu a ser feliz, mas que ainda se assustava vez ou outra, fosse com o barulho dos fogos de artifício ou com a briga dos gatos no telhado da vizinha. Ele tem essa mancha escura em formato de coração (não o coração que as crianças desenham, mas o coração anatômico de um humano saudável) no meio da barriga na altura do estômago, onde é possível ver claramente a artéria pulmonar e a veia cava superior, perfeitamente proporcionais e exatamente posicionadas ali onde deveriam estar fosse mesmo aquilo um coração humano. Foi por isso que eu sugeri que ele se chamasse Tumtum, mas ele se chama Quarta-feira e não tinha nada na aparência dele que sugerisse esse nome, não há nenhum dia da semana com as pernas tão compridas e tão magras quanto as dele. Eu não precisei procurar nenhuma foto para me lembrar dessas coisas, tava tudo ali, na minha cabeça.
A gente saiu da casa da minha mãe um dia desses à noitinha, o meu filho dormia sereno, quase sorria, eu acho impressionante como uma criança dorme no carro, sai do carro, vai pro colo, algumas vezes tem sua cabeça gentilmente ou não empurrada contra uma porta ou uma parede ou um ombro ossudo e continua dormindo e continua sereno, eu fiquei preocupada porque Quarta-feira ia latir feliz com a nossa chegada e eu não queria que a criança acordasse e fiz xiuuuuu, mas ele não latiu. E também não apareceu, a criança já na cama, dormindo, dormindo, e ele nada. Eu olhei tudo: todas as portas trancadas, as janelas fechadas, cada parte exatamente igual a gente deixou quando saiu, só sem o nosso cachorro. Assim, como se fosse possível. Eu pensei que tinha morrido em algum lugar armário atrás do sofá baú sei lá, mas passei horas olhando revirando todos os cantos possíveis da minha casa e não havia Quarta-feira algum, nem vivo nem morto, nem pedaço.
Claro que os vizinhos não viram nada, porque provavelmente nada aconteceu. Como se procura um cachorro que não fugiu, não foi roubado, não morreu? Os dias que se seguiram foram uma repetição daquele.Talvez oferecendo ao Quarta-feira as condições exatas do dia do desaparecimento, ele pudesse reaparecer sem muito alarde, sem que a gente precisasse ficar pensando muito no absurdo ou no improvável impossível do que tinha acontecido. Eu não pediria explicações, disse isso em voz alta algumas vezes, que ele ficasse tranquilo, e voltasse pra gente, só isso. Nós íamos à casa da minha mãe, comíamos o mesmo frango sem tempero na hora do almoço e o mesmo pão com manteiga no fim da tarde. No quarto dia, um domingo, ela inventou de fazer um macarrão e eu gritei cadê o frango e a minha mãe aprende bastante rápido de modo que nos próximos dias isso não foi um problema e o frango estava lá, todos os almoços, sem tempero e sem vida, esperando pela gente bem no meio da mesa. Eu não deixava o menino brincar de nada que fosse diferente do que brincamos no dia em que o Quarta-feira sumiu: um pouco de bola, um caminhão amarelo que insistia em perder uma das rodas e um quebra-cabeças com a imagem de um filhote de leão brincando com o filhote de uma onça pintada, como se pudessem ser amigos, como se, ao menos, vivessem no mesmo espaço. Era uma ilustração horrível e eu só sei que é um leão porque a caixa do quebra-cabeças dizia oitenta peças filhotes de onça e leão na selva.
O menino se cansou da bola, do caminhão, do quebra-cabeças e, mais que tudo, de mim, a minha mãe começou a me achar um pouco louca mas eu expliquei aos dois que aquela era a nossa única chance e eu sentia falta do Quarta-feira e o menino também e a minha mãe não, ela nem gostava de cachorro, mas ela sentia falta de quem eu e o menino havíamos sido antes daquilo tudo então todo mundo fazia as mesmas coisas porque como eu havia dito aquela era a nossa única chance.
Quando ele não dormia no caminho de volta eu ficava dando voltas pela cidade até que sim, ele chorava chorava e muitas vezes eu também e o choro de desespero dá lugar ao choro de exaustão que dá lugar a exaustão pura que dá lugar ao silêncio e ao sono e aí podíamos voltar pra casa e eu abria a porta esperando que o Quarta-feira nos latisse na cara, aquele latido meio desesperado que ele dava de alegria incontida, o corpo inteiro não acreditando que a solidão do mundo tinha acabado e que as suas pessoas estavam, sim, voltando para a casa, apesar da certeza mais absoluta que já tinha tomado conta dele de que não, a gente não voltaria — fizesse dez minutos ou oito horas que a gente tivesse saído. Ele nunca tinha ficado mais de dez horas sozinho desde que fora lá pra casa e antes disso eu não sei, parece mesmo que foi um cachorro sofrido, não é isso que acontece aos cachorros de rua? Não é isso que me diziam as cicatrizes que o veterinário me mostrou água fervente isso acontece muito, você não imagina, as pessoas não querem cachorros sem dono por perto.
Agora ele tem dono, eu respondi.
Eu abria a porta fazendo xiuuuuu, porque foi o que eu disse no dia que ele desapareceu, mas o que eu queria mesmo era que ele latisse desesperadamente, que ele acordasse o menino, que ele acordasse todos os vizinhos, que não dormiam, porque era só o começo da noite, mas ele não voltava, ele não latia, ele não estava.
E aí, era uma terça-feira quando a gente pegou a caixa que dizia oitenta peças filhotes de onça e leão na selva e não conseguimos terminar de montar o quebra-cabeças, porque só havia setenta e nove peças, uma delas desaparecida, procuramos, reviramos, todos os lugares, a casa inteira e sem aquele pedaço, não adiantava o resto, não fazia sentido fazer tudo, então hoje a gente só espera o Quarta-feira, mas já não come o frango.
O menino pergunta por ele, eu respondo, mas ninguém mais dorme no carro. Ou em qualquer lugar.
Marcela Dantés é escritora, autora de “Nem sinal de asas” (Patuá, 2020), romance finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura de 2021.