Érica Bombardi
A parte mais difícil, e sei que você não vai acreditar, é escolher o nome.
Depois de comer tanta mulher, pegar tanta puta de bar, a gente começa a ter uma biblioteca de nomes,personagens de filmes franceses, na cabeça.
Clara? O quê?
Mariana? Tá de brincadeira?
Emanuelle? Tá doente, meu irmão?
Anna? Minha mãe se chama Anna!
Jesus Cristo!
Calma, isso foi apenas um desabafo. Ninguém quer colocar um nome desses na filha.
O bebê gemeu baixinho em meu colo. Tão pequeno. Nunca que eu ia pegar uma coisinha dessas em sã consciência. Cara, isso é jeito de pensar? Não. Meu bebê. Meu bebê.
“Já decidiu, senhor? Antes de deixar o hospital, o senhor precisa registrar a criança.”
“Não sei ainda. Dá mais um tempinho.”
Uma enfermeira dessas e minha noite estava ganha. Vanessa, dizia o crachá pendurado no uniforme branco. Menos um nome pra minha lista.
Seriam olhos verdes. Os de meu bebê, na certa. Era a cor dos meus olhos. Deus, Deus, Deus. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove… peraí, calma. De novo. Respira. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Dedinhos são tão pequenos, às vezes parecem ser mais, às vezes menos. São dez. Mãos e pés. Tudo lindo e perfeito.
E os lábios? Rosadinhos e cheios. Não é uma boca amargurada, sabe, como daqueles velhos ranzinzas, uma linha em vez de lábios, e sempre com baba acumulada no canto. Não. Uma boquinha fofa e linda. Passei o dedo por sobre a boquinha e o bebê sugou meu dedo. Tadinho, estava com fome.
“Enfermeira, ei?”
“Senhor, é só apertar o botão vermelho, vê? Aqui do lado da cama. Eu venho. Não precisa gritar.”
“Desculpa.”
“Não vou mais avisar o senhor sobre isso, tudo bem? Por isso que a outra mãe pediu pra mudar de quarto na noite passada, lembra?”
“Tá com fome de novo. Você me ajuda?”
“Ah, claro. O senhor aguarda só um segundo?”
E a Susana saiu rebolando aquele rabo lindo. Peraí, não era Susana, era o que mesmo? Bárbara? Jesus, eu sou um puto de um otário mesmo. Que nome eu iria dar pro meu bebê?
Se fosse pela beleza, seria Daniela. Menina linda. Cabelos castanhos compridos, cílios longos e os olhos mais incríveis que já vi. Ela gostava de ficar me encarando, mordiscando o próprio lábio, pra gozar. Nunca entendi aquilo.
Ah, mas a melhor trepada da minha vida não foi com ela, não. Como era o nome mesmo? Não, não foi de nenhuma puta. Puta nenhuma se compara a uma mulher carente. Você sabendo que é um negócio, não é a mesma coisa; você sabe que a mulher está ali pra pagar a fatura do cartão de crédito, não é sincero. É… pode me chamar de romântico. A melhor trepada foi a da viúva que morava no fim da rua da minha mãe, quando eu tinha 17, como era mesmo o nome? Joana. Não, Janice. Janice nada. O que eu ia fazer lá mesmo? Reforço de matemática. Isso mesmo. Não sei como minha mãe acreditava naquela merda. Como um cara de 17 anos ia fazer reforço de matemática? Que desculpa os moleques usam hoje? Será que ainda comem viúvas carentes?
Bons tempos.
“Senhor, senhor.”
“Ah, sim?”
“Aqui a mamadeira.”
A gostosa enfermeira Suzana ou Bárbara ou Bruna me passou a mamadeira. Nem tive de me esforçar muito para a neném achar o bico. Que lindinha! Fazia uma baita força. Shush shush shush. Que fome! Seria uma menina grande e forte. Nada de brincar com boneca… Nada disso, sou um pai moderno. Ela vai ser esportista, como eu. Tá bom que vai ser difícil a gente ir no futebol de salão… Mas, que porra, ela vai sim! Não existe jogadora de futebol profissional? Então. Minha menininha campeã do mundo. Toda fofa, de rabo de cavalo, aquele sorrisão, levantando a taça e oferecendo a vitória ao paizão aqui.
Minha garota linda!
A mamadeira acabou e a enfermeira que eu, por Deus, nem tinha percebido que ainda estava ali pegou o frasco e me lembrou de levantar a neném e a sacudir gentilmente.
“Ela precisa arrotar”, ela me lembrou.
“É mesmo. Me ajuda?”
Ela se ofereceu para pegar a bebê, mas eu não entreguei minha menininha não. Ergui o tronco até conseguir ficar sentado. Senti a pele da barriga repuxar e comecei a suar. Uma fisgada mais forte no lado esquerdo, perto da virilha, no mesmo lugar que eu já tinha reclamado para aquele puto do médico. Ele havia feito alguma cagada, eu tinha certeza. Caras assim vivem esquecendo buchas e tesouras dentro das pessoas. Respirei fundo e escorreguei minhas pernas para a esquerda e depois desci os pés para o chão. Eu me apoiei na enfermeira gostosa e deixei minha mão bater em cheio no peito dela. Como de costume, pedi desculpas e me levantei.
Carreguei minha bebê linda encostada em mim, bem retinha, sacudi seu corpinho gentilmente para cima e para baixo e ela arrotou.
Era tão fácil.
Fácil.
Eu pensei que era uma maldição, sabe? Alguma das putas — não, das mulheres que eu tinha aí largado, deixado, esquecido, afinal sou humano — então, alguma delas me botou esta maldição.
Como eu pude pensar isso?
Minha lindinha, minha fofinha, como poderia ser maldição? É a luz da minha vida.
Como diziam por aí, ela era o meu coração batendo fora do meu corpo. Para sempre eu seria o pai dela, para sempre. E a mãe, acho.
A enfermeira ainda estava ali parada, me olhando. Aliás, eram duas agora me olhando, encostadas na porta, meio entrando, meio saindo do quarto. Bruna e uma outra com crachá ilegível. Pareciam gêmeas.
Não, cara, nem vou falar sobre gêmeas. Você já deve imaginar bem melhor do que eu posso descrever.
Não sei quais nomes sobrariam na humanidade…
Roma e França, as gêmeas… Abençoada seja a mãe daquelas duas. Deviam ser modelos. Toda a família… bisavós, avós, mães, filhas.
Não, minha menininha não vai chegar nem a pensar numa profissão assim. Nada de modelo, nem aeromoça, nem vendedora de pastel. É uma longa história. Enfim. Não. Esportista, está decidido.
“O senhor já escolheu o nome?”
A tal da enfermeira Bruna tinha voz de macho. Cara. Era mais grossa que a minha. Eu ri sem querer. Minha neném fez um som celestial, parecia uma risadinha. Ah, minha menina, já concordando com o papai. Minha lindinha.
“Não, querida, não escolhi. O que você sugere?”
A tal da Bruna meio macho me olhou de lado e empalideceu. Ficou muda e, quando eu pensei que ela ia explodir, a enfermeira encostada perto dela olhou bem no fundo dos meus olhos verdes e, com a voz mais aveludada do mundo, disse: “o nome mais lindo que existe neste mundo.”
Eu sorri e ela também.
O nome mais lindo que existe no mundo. Era isso.
Era isso ter um filho, uma filha. Era o nome mais bonito que existe no mundo. Não importa quantas Martas há por aí, nem Luizas ou Biancas. Minha menina teria o nome mais bonito que existe no mundo.
Mudei a neném de posição no meu colo. Eu a aninhei nos braços, como fazem as mães antes de amamentar, e ela me olhou, levantou as mãozinhas, ainda fechadas em punho, e bateu de leve no meu rosto.
Meu “oh” foi seguido do mais longo e sonoro “ohhh” que mulheres em grupo já fizeram. Ali, agora, havia mais do que uma pequena multidão de enfermeiras; e mesmo as novas mamães que passavam encurvadas no corredor espiavam pra dentro do quarto.
O nome mais lindo que existe.
Minha menininha me batendo no queixo. Tão pequena e tão forte. Como uma semente que esconde dentro de si um imenso baobá. Como a terra que sustenta nossos pés e alimenta as plantas e os animais. Como o ar, invisível, mas que nos rodeia, nos abraça nesta união generosa e misteriosa que é a vida.
É. A minha menininha tem toda essa força, e eu vou cuidar direitinho dela. Ela vai estudar e vai ser inteligente, bem mais que eu, por Deus, que seja, e vai ser forte para aguentar carregar o pai dela e o jogar no Vesúvio quando ele for velhinho.
E do mundo, minha criança, quero que tenha todas as alegrias, e que passe rápido e voando pelas tristezas, porque tem de conhecê-las. mas não viver imersa nelas. E ainda desejo que você tenha um coração honesto e sincero, mesmo que ele se parta algumas vezes, porque é melhor ser bom do que o contrário.
E que, se de mim tenha herdado algo, que seja a esperança que tenho agora ao te olhar. Que seja meu coração, repleto assim de paz, ao te ver, apenas te ver intransitivamente. Simplesmente a alegria de saber que você existe.
E que terá o nome mais bonito.
Ao levantar os olhos, fui fuzilado pela multidão de mulheres ali a postos, testemunhas da minha indecisão, da minha estranheza. Alegria e angústia. Paz e medo. Como era difícil ter um bebê nos braços.
O mundo, esse mundo puto, seria implacável com a minha criança. Mas ela já estava ali. Estava ali do mesmo jeito que eu também estava… e ela tinha todo direito de fincar seus pezinhos na terra, babar e soltar quantos sons guturais seu coraçãozinho quisesse.
O mundo puto seria puto com meu bebê.
Senti uma mão pousar de leve em meu braço, perto da cabecinha da neném. Era a enfermeira do lance do nome mais lindo do mundo. O crachá dela estava gasto, não se lia nada ali. Não havia nome algum para estragar. Ela me deu um olhar suave, que combinava com a voz dela, e então beijou o topo da cabecinha do meu bebê e disse: que você seja forte como seu pai.
Ela deu um passo para trás e outra mulher tomou o lugar dela. Repetiu o mesmo gesto e disse baixinho: vai ser inteligente, mais que o pai. E todos nós rimos. Meu riso, infelizmente, devo admitir, terminou num engasgo de lágrimas. Eram os hormônios.
Bruna, a Bruna com voz de macho, também beijou meu bebê e desejou que ele fosse verdadeiro consigo mesmo.
Uma a uma, as mulheres o abençoaram. Eram tantas dádivas e tantos bons desejos que eu nem consigo me lembrar. Apenas lá pela décima bênção é que me ocorreu pedir para alguém filmar. Eu precisava mostrar isso para ela quando crescesse. Para que visse. Para que sentisse. Que esse mundo é uma porra sim. Mas não é apenas isso.
Essa porra de mundo é a NOSSA porra de mundo. Os riscos que corremos são tantos que não há como enumerar. Mas um desses riscos vale a pena, sim, é o de encontrar pessoas como essas, pessoas que engrandecem nossa jornada. Podem ser poucas ou, às vezes, uma única, como uma estrela cadente cruzando o céu noturno. A luz que nos guia e ilumina mesmo que apenas por uma noite.
Gurrrr, meu bebê guturou, que mesmo sem ser uma palavra foi o que aconteceu, e todos rimos. Um sorriso leve, de alívio e alegria. Alguém tirou uma foto e depois anotamos nosso e-mail em uma lista.
Não vai acreditar mas, ali, entre mulheres rindo, minha maior preocupação ainda era qual nome escolher.
Tenho certeza de que será o mais bonito do mundo.
Érica Bombardi é escritora e editora de texto, autora de “Além do Deserto” (2012) e “Canto do Uirapuru” (2015).