Paulliny Tort
De onde vêm os escritores? E não estou perguntando o que leva um indivíduo a tomar essa decisão, vou me tornar escritor, mas, geograficamente, de onde vêm os escritores? Existiriam hot points, zonas quentes que apresentam uma maior probabilidade de encontrá-los dada uma constelação qualquer? Ou a sensibilidade da escrita desperta nos espaços mais improváveis e é por isso que temos Carolina Maria de Jesus, para citar um exemplo? Por questões socioeconômicas que se entrelaçam ao baixo letramento das populações, sabemos que países considerados periféricos e outras zonas empobrecidas tendem a ler menos e, portanto, a escrever menos. Mas, para além do acesso ao livro e à leitura, haveria uma limitação, uma circunstância relacionada ao lugar e sua história que nos impediria de pensar como escritores?
O grande poeta búlgaro
“um país deve ter atravessado os grandes acontecimentos da história para produzir uma consciência capaz de pensar de forma universal”.
Umberto Eco fez essa afirmação durante uma conversa com o roteirista Jean-Claude Carrière, publicada em “Não contem com o fim do livro” (Record, 2010). Antes, ele havia citado um aforista italiano que afirmava ser impossível haver um grande poeta búlgaro. Eco reconhece que a ideia soa “um pouco racista”, mas, segundo ele, ainda que um grande poeta búlgaro tenha existido, sua língua não seria suficientemente conhecida e poucos teriam acesso à sua obra. Embora eu não acredite que a grandeza estabeleça uma relação linear com a popularidade, compreendo o raciocínio. A tensão se dá quando Eco acrescenta o que transcrevi acima, invalidando novamente a possibilidade de que tal poeta exista, sem definir os conceitos de “grandes acontecimentos” e “forma universal”. Se o que ele disse for verdade, consideraremos que um sujeito nascido onde os acontecimentos históricos não sejam “grandes” (?) será alguém incapaz de pensar de “forma universal” (?) e não terá condição de se tornar um escritor tão bom quanto Hemingway. Li essa conversa há mais de dez anos e ainda me pergunto o que Eco, um pensador admirável, quis dizer com aquilo.
Bom, o papo segue e Carrière lança a pergunta retórica: “Quantos Hemingway existiram no Paraguai?”. A resposta é implícita: não existiram. Talvez algumas pessoas naquele país até tivessem, ao nascer, capacidade para produzir uma obra de grande originalidade, explica Carrière, mas não o fizeram porque não sabem escrever ou porque desconhecem o que vem a ser um escritor. Confesso que me surpreendo com essa imagem, com esse Paraguai dos iletrados, com essa América Latina embrutecida, comum nos filmes ruins. No entanto, Carrière era um homem muito erudito, não diria um simples absurdo; em parte, o que ele afirma é verdadeiro, talentos são perdidos cotidianamente por falta de oportunidades nas periferias do mundo. Mas reduzir um povo à incapacidade não é o que eu esperaria de uma mente forjada por grandes acontecimentos históricos, uma vez que interpretações preconcebidas dessa natureza contrariam a própria ideia de universalidade.
Eco e Carrière foram realizadores geniais, sobre isso não há o que discutir. E não me espanta que desconhecessem a obra de Augusto Roa Bastos, escritor paraguaio, porque ninguém consegue conhecer a literatura de todos os lugares. Eu, pelo menos, não consigo. O desconforto vem de observar dois homens cujas mentes e circunstâncias eram tão privilegiadas chegarem ao mesmo tipo de conclusão que, perdoem a hipérbole, nosso tio preconceituoso expressaria à mesa do jantar. Naquela passagem, não há qualquer referência real às forças envolvidas no fazer literário da Bulgária, do Paraguai ou de outro país. Em uma conversa muito boa, ali gastaram saliva com senso comum. Curioso como o intelectual da metrópole ainda se sente seguro em tomar por certas a bruteza e a estupidez do outro: os bons escritores de tais países, se não os conheço, é porque não existem.
O caso africano
No imaginário dos estabelecidos globais, nós, periféricos, somos brutti, sporchi e cattivi. Feios, sujos e malvados, para citar o brilhante filme de Ettore Scola, conterrâneo de Eco. Não podemos ser grandes escritores, falta-nos educação. Há excepcionalidades, exceções, um Borges, um Neruda, um Cortázar. Porém, nenhum deles será um Hemingway (que fenotípica e culturalmente estava mais próximo de um europeu que de um ameríndio). Desconfio que essa perspectiva guarde estreita relação com a ideia ainda remanescente de que a civilização humana começou na Europa. Não faz tanto tempo que uma parte significativa dos europeus acreditava estar biologicamente adiantada em relação a outros povos. Basta ler um pouco sobre a colonização e o saque das Américas para perceber como se convenceram de que eram mais “evoluídos”. Os fósseis neandertais que foram encontrados nas cavernas de lá serviram para reforçar essa convicção: os europeus teriam chegado antes, por isso, sabiam mais e se desenvolveram melhor. Tanto que depois alguns paleontólogos se recusaram a admitir a África como berço da humanidade, mesmo diante de todas as evidências científicas. Se a nós, das zonas periféricas, negam até a possibilidade da literatura, quem dirá a origem da raça humana.
Mas, nesse caso, o discurso caiu por terra, porque o desprezado continente africano é o centro de nossas origens evolucionárias. Na África, o meio ambiente exerceu as pressões seletivas que favoreceram os primatas bípedes, assim como o desenvolvimento de seus cérebros grandes. Todas as espécies conhecidas de hominídeos datando de mais de dois milhões de anos são unicamente africanas (subsaarianas, segundo o que tenho lido).[1] Os australopitecinos, por exemplo, não ocorriam fora da África, assim como outras três espécies do gênero Homo, do qual somos os únicos representantes vivos.[2] Robert Foley, em seu excelente “Os humanos antes da humanidade – uma perspectiva evolucionista” (Unesp, 2003), fala sobre como o caso africano feriu a sensibilidade de cientistas europeus, por razões que ele considera “basicamente chauvinistas”: naquele ambiente intelectual, a Europa deveria ser o continente avançado e a África, retardatária.
O Vale de Rift e o Transvaal, porém, mostram uma história diferente. Os fósseis encontrados nessas regiões, que atravessam Zâmbia, Tanzânia, Quênia, Etiópia e África do Sul, contam que a humanidade começou lá, não na França ou na Inglaterra, como aqueles paleontólogos tentaram defender. “Essa visão da evolução como estando indissoluvelmente ligada ao desenvolvimento histórico, consistindo numa corrida de sentido único, era de aceitação geral, assim como o era também a visão de que a África era a perdedora”, afirma Foley. Mas, pelas muitas evidências acumuladas, nossa origem africana hoje prevalece na comunidade científica. Fala-se até de uma Eva Africana, a primeira mulher, ancestral de todos nós. Gosto de pensar nessa Eva porque ela sintetiza uma ruptura que tem se revelado nos mais variados campos. Ruptura que há de ocorrer também nas artes literárias, se é que já não está ocorrendo. E assim como compreenderam que somos todos filhos da África, talvez descubram que há bons escritores no Paraguai e grandes poetas na Bulgária. Talvez entendam que livros não se fazem apenas de fonemas e signos, de editores e mercado, embora tudo isso seja importante, mas de um sentimento muito profundo, um sentimento que se esconde em cada exemplar de Homo sapiens.
[1] Hominídeos são a família biológica da qual os humanos são membros, Hominidae. Até recentemente, consideravam-se hominídeos apenas os representantes do gênero Homo, ou seja, nós, nossos ancestrais e outras formas relacionadas já extintas. Basicamente, primatas eretos e bípedes, mais ou menos parecidos conosco. No entanto, com o aporte da biologia molecular, as classificações mais recentes se ampliaram. Hoje também são chamados de hominídeos os chimpanzés, os gorilas e os orangotangos, assim como seus ancestrais imediatos.
[2] Por australopitecinos, compreenda qualquer espécie relacionada aos gêneros Australopithecus e Paranthropus. O termo deriva de uma classificação antiga que considerava esses gêneros em uma subfamília separada, Australopithecinae.
Paulliny Tort é jornalista e escritora, autora de “Erva brava” (Fósforo, 2021).