Natércia Pontes
Eu sabia, eu sabia, desde a primeira vez que entrei na tua casa, desci a escada e senti o cheiro do mofo tomando as paredes e os amontoados de caixas espalhadas pelo chão daquele lugar subterrâneo, empoeirado e frio, uma espécie de garagem que fazia as vezes de um estúdio de som. Desde a primeira vez, eu sabia, quando meti meus pés pelas minhas mãos no assoalho úmido e frio da tua casa, garagem ou estúdio, desde a primeira vez, te digo, quando o mofo assomado pelas paredes serpenteava em veias verdes ou cinzas e as caixas velhas e abertas postavam-se empilhadas ali pelo chão, no assoalho frio, musgo, musgo, musgo, caminho pantanoso, desde a primeira vez, eu sabia e te digo, sabia que não era meu, o teu coração.
E por que entrei ali e meti meus pés pintados de vermelho na lama, me diga, por que meti meus pés pintados de vermelho na lama, naquela lama borbulhante, obscura e fria? Por que entrei ali de mãos dadas às tuas, na calada da noite, depois de uma cerveja ou outra, um afago no rosto, um beijo na boca, não sei, não sei, minhas mãos dadas às tuas, sempre dadas às tuas, meus pés, pelas minhas mãos, mãos, mãos, mas por que entrei ali, se sabia, eu sabia, me diga, ai, como eu sabia, sabia que jamais, caminho pantanoso, verde ou cinza, sabia que jamais chegaríamos a lugar algum?
Mesmo naquela manhã de fevereiro, a setenta e nove quilômetros por hora, depois de uma cerveja ou outra, um beijo na boca, um afago no rosto, quando dirigia, bêbada, serpenteando acima do limite permitido, rindo, rindo, meus dentes separados, o dia nascendo, teus cabelos claros brilhando contra o sol, mesmo naquele dia, eu sabia que jamais, jamais, meus pés, minhas mãos dadas às tuas, sabia com o coração, sol, sol, sol e assoalho frio, te digo, eu simplesmente sabia.
Claro que havia algo de novo no céu, em mim também, uma espécie de mistério, o ano começando, os teus olhos claros, fogo, fogo, fogo, sobre minhas coxas abertas no banco do carro, o disco do Arnaldo Baptista e a tua fixação em meus dentes separados, bolhas, bolhas, beijos na boca, bolhas, bolhinhas, bolhas, boca obscura, me diga, será que eu vou virar bolor?
Não sei como, eu sei, eu sabia, te disse, mas uma arranhadura no disco, à revelia de uma dança macabra, da vida mesmo, uma arranhadura trincou o sol, escureceu o céu e fez tudo virar pântano. Eu simplesmente descia a escada e sabia, meus pés pintados de vermelho, verde ou cinza, enfiados na lama, minhas mãos dadas às tuas, um amontoado de beijos empilhados e espalhados ali pelo céu, bolor. Não sei bem como, lama, lama, o amor não veio e acabamos não chegando, eu sabia, desde a primeira vez, te digo, desde a primeira vez eu sabia, e acabamos não chegando a lugar algum.
Natércia Pontes é escritora, autora de “Os tais caquinhos” (Companhia das Letras, 2021).