Guilherme Pavarin
Muito antes de deixarem de se falar, houve uma época em que viajavam todos juntos; sempre no verão, sempre para o mesmo lugar.
Ao lembrarem daqueles dias, Lívia e Laura contavam, talvez com algum exagero, que o pai sempre errava as últimas curvas da estrada de terra que davam no camping. Errava tanto que nunca algum deles soube o caminho certo.
Da última vez, pouco antes das bifurcações sem placa, Vera dizia para o marido virar à esquerda, depois à direita. Tales, com seus óculos cujas lentes escureciam à sombra das árvores, afirmava que era o contrário, tinha convicção. Esparramadas no banco de trás, as duas filhas ignoravam, cada uma a seu modo, os pedidos para tomarem algum partido.
Laura, com os pés na caixa térmica e as mãos porosas de salgadinho em alguma revista da mãe, optava por um meio termo reticente; se a mãe insistisse, ela jogava um dos cotovelos nos braços de Lívia, que, com o discman desligado no colo, os fones de ouvido amarelos apertando as bochechas, se distraía com as vacas de costelas à mostra nas fazendas; imaginava que elas murchavam a barriga igual ela teria de fazer mais tarde — sempre havia, nas piscinas do camping, garotos que boiavam como crocodilos, os olhos vermelhos de cloro, prontos para mostrar os dentes.
Se Lívia falasse algo naquele trecho, era para criticar a indecisão da irmã mais nova, uma diplomata, segundo ela, desde sempre desastrada. Laura então escondia o rosto atrás do papel, e a rainha da Inglaterra acenava para quem a chamasse.
Caso a viagem fosse durante o pôr do sol, um homem muito velho, de chapéu de palha e barbas que caíam como algodão no peito negro, atearia fogo nas folhas secas em algum ponto da estrada até sumir em meio à fumaça; mas, naquela última viagem, nenhuma das duas lembrava se contornavam os arbustos secos, as cercas de madeira carcomida e as casas sem vidros nas janelas pela tarde ou pela manhã.
A única certeza era de que o Corsa branco, lotado de malas e mobílias velhas, vacilava pelas ladeiras apinhadas de pedras enormes onde se podia ler, em tinta branca, números de telefone de serviços de guincho e lentas declarações de amor. Por ali, qualquer que fosse a combinação escolhida pelo pai, acabavam perdidos. Vera então girava a manivela para abaixar o vidro, e a poeira invadia o interior do carro como um gás laranja que podiam pegar com os dedos. Muitas vezes, a manivela caía na mão da mãe, e ela, por muitos anos, sonharia com manivelas e maçanetas caindo sobre si. Quando via um andarilho na estrada e dava sorte de nenhuma peça se soltar, Vera dizia, com o mesmo tom de voz que usava para contar as conquistas dos primos de Lívia e Laura, que Tales estava perdido.
Meu marido está perdido e precisa de ajuda, ela dizia. As irmãs memorizavam as coordenadas e as repetiam sem parar. Tales e Vera, por esse e tantos outros motivos, perdiam a paciência; acusavam-se de ofensas que as filhas demorariam anos para compreender, ainda que as usassem desde cedo, inclusive naquele dia, no parquinho, entre elas.
Só voltavam a ter alguma harmonia perto do almoço. Antes, limpavam o trailer com baldes de água e sabão, quando as irmãs discutiam para ver quem usaria a mangueira. Laura comentava que o trailer perdia um pouco do tamanho e das cores a cada ano que voltavam para lá. Lívia, mais tarde, também diria que notava o desbotamento daquele veículo enquanto passava as mãos nas lanternas que remetiam aos olhos de um animal arisco.
Nas fotos mais antigas, dava para ver a pintura lateral do trailer, vermelha e escura como um machucado de dois dias. Nas lembranças das irmãs, porém, a parte externa do trailer apresentava um tom acinzentado e rugoso.
Jogar espuma sobre ele era como dar banho em um elefante, as duas diriam, não com as mesmas palavras, nem para as mesmas pessoas, anos mais tarde. Um elefante que encolhia com o tempo.
***
Era difícil explicar para os colegas da escola. Nem as professoras, quando pediam as redações sobre as férias, conseguiam entender muito bem. Se Laura e Lívia soubessem desenhar, talvez evitassem as confusões, mas nenhuma delas se esforçou para aprender mais do que colorir animais e traçar humanos de palito.
Tentavam descrever, não com muito sucesso, que o trailer delas nunca saía do lugar porque era acoplado a uma base de concreto chamada módulo — uma espécie de puxadinho de piso frio. Era para lá que viajavam e permaneciam até voltarem com os cabelos mais claros e volumosos, as peles ardentes, torradas de sol. As cascas dos ombros e costas caíam até o outono, e era sempre com espanto que descobriam, no espelho, lado a lado, os mapas das novas peles uma da outra.
Parte do puxadinho tinha a função de travar as rodas do trailer; já a outra, a maior, servia como um híbrido de cozinha e sala de estar. O módulo da família era revestido de azulejos brancos, por onde se espalhavam cadeiras de praia; mesas de plástico; um sofá bege rasgado; bisnagas de espuma; um televisor de tubo com uma placa frontal que caía com o impacto dos sons de tiros e dos gritos de gol; bicicletas com cestinhas; uma pia e um fogão tão pequeno que Lívia e Laura usavam anos antes para brincar com as bonecas maiores. Nem tudo ficava exposto; boa parte do módulo era revestida por uma barraca cujas cordas eram presas com pregos na terra. Na frente e nas laterais dos panos, redes que impediam a entrada dos insetos. Quando Lívia e Laura encostavam a testa ali para espiar o exterior, era como se enxergassem através de um véu costurado por um gigantesco bicho-de-seda.
Seria como viver em um acampamento, mas a parte da aventura, com o passar do tempo, ficava tão monótona quanto a canção de mesmas notas das cigarras que cruzavam a noite. Os trailers, afinal, existiam para serem transportados; o da família, cheio de teias e ninhos nas rodas, estava há tanto tempo sem uso que provavelmente nunca mais rodaria.
Em janeiro, a maior parte dos frequentadores do camping dirigia seus trailers para outros lugares. Saíam para acoplar as casas motorizadas em outras praias, em cidades distantes. A paisagem ao redor da família naquelas férias, então, era de um deserto de gramas altas e módulos com marcas de pneus. Vez ou outra, viam turistas desavisados ou sem dinheiro para uma viagem mais longa. Tales cumprimentava aqueles vultos de chinelo e toalha como se os conhecesse há décadas. Saudava também, com voz entusiasmada, os idosos com óculos de nadar que levavam seus poodles de lágrimas vermelhas para um mergulho — sempre havia um, e ele jurava nunca ser o mesmo. Como um guia turístico amador, recomendava que todos fossem ao estábulo ao cair da tarde. Lá, atrás dos cavalos, dava para ver as montanhas e os animais ganharem tons dourados com a luz do poente.
Ele sabia que, quando ali chegava um forasteiro, não durava mais que uma noite; na manhã seguinte, provavelmente o veria levantar poeira e esbravejar contra os maus tratos de Selma, a administradora, uma mulher cujo rosto, tanto para Laura quanto para Lívia, era o mesmo que enfeitava as embalagens de palito de dente. Ela era casada com um homem que as irmãs nunca haviam visto a pé. Estava sempre montado em um dos cavalos, sem camisa, com o rosto e o dorso cobertos por torvelinhos de pelos. Lívia e Laura o chamavam de Centauro.
Tales e Vera, desde que conheceram o camping, anos antes do nascimento das filhas, ouviam de Selma e Centauro que o negócio não ia durar. Naquela época, como revelavam os negativos das fotos que as filhas erguiam contra o sol, os dois percorriam o litoral do Brasil com o trailer e só apareciam lá para guardá-lo. Às vezes ficavam um ou dois dias a mais, quando chovia muito ou quando queriam faltar na segunda-feira de trabalho para fazer amor. Era o único trato dos primeiros anos do namoro: uma vez por semestre pegavam um atestado médico falso e transavam durante um dia todo de expediente. Nenhum deles previa que um dia passariam as férias ali, no estacionamento de outrora, assim como não previam Laura, nem Lívia. Mas aquelas eram as férias que lhes cabiam.
Para um casal que se espremia o ano todo em um apartamento de dois dormitórios, ter um campo enorme à disposição era uma mudança muito brusca, uma vastidão um tanto incômoda. Demoravam a se acostumar com o mato, os animais, os cheiros, os sons. Tales passava o dia todo em um dos dois lagos pesqueiros. Escolhia o que menos tinha garças no entorno e iniciava um ritual de iscas e espera. Lá pelo terceiro dia, cansado de ter que explicar por que não havia pescado nada, parava de levar as varas. Ficava à beira do lago sentado em uma cadeira dobrável rosa da infância das filhas, rodeado de latinhas de cerveja em cujas bocas despejava as cinzas dos cigarros. Se deixassem, talvez passasse as noites lá. Talvez vivesse ali para sempre. Na falta da habilidade para domar uma tilápia ou um tambaqui, Tales entrava em duelo consigo mesmo. Nunca estava disposto a ceder ao sono. Adormecia com a boca aberta e o pescoço quase se desprendia da cabeça ao cair para trás. Despertava, assustado com o próprio reflexo esticado nas águas turvas, e retomava o ciclo.
Depois de jantarem lanches ou macarrão, Tales se jogava no sofá velho. À mesa, Vera imitava para as filhas a pescaria sem vara do marido e elas riam até o pai se incomodar e aumentar o volume da televisão. Vera sentia satisfação, mas a verdade é que também gastava a maior parte do tempo com sonecas ao ar livre. Mudava de lugar várias vezes pela tarde em busca de uma sombra duradoura. Logo no primeiro dia, adormeceu sob o mormaço com um livro no peito e ficou com a pele toda vermelha, exceto ali, pouco acima da parte superior do biquíni, onde as páginas abertas deixaram grafada uma borboleta branca permanente.
Nenhuma das filhas, nem mesmo Vera, lembraria qual era o livro. Quando contassem sobre a viagem, inventariam ser algum clássico russo ou uma seleção de poemas de um amigo do trabalho. Na verdade, raramente mencionariam a borboleta branca.
***
Até o verão anterior, as irmãs eram chamadas por pais e avós de siamesas. Vistas de perto, pareciam um corpo só: tinham a mesma altura, os mesmos cabelos cacheados e os mesmos caninos ligeiramente acima dos demais. Vera contava que Laura, quando bebê, imitava a risada de boca aberta e cheia de espasmos da irmã mais velha. Era comum também ver a caçula trocar as galochas antes de sair de casa para botar sandálias iguais às de Lívia. Em casa, não faziam nada sozinhas; gostavam dos mesmos desenhos animados e idolatravam os mesmos personagens, liam até os mesmos livros. Talvez a letra de Laura fosse mais caprichada e ela não odiasse as aulas de educação física; Lívia, por outro lado, talvez não retirasse sempre os picles dos hambúrgueres. Havia outras diferenças, é claro, é provável que fossem muitas e mais significativas, mas todas pareciam anuladas pela vontade de serem uma coisa única. Até algo, naquela viagem, se perder.
Lívia tinha uma teoria, ainda que não se sentisse, nos últimos tempos, tão convencida assim: algo havia se rompido, talvez para sempre, quando foram ao zoológico, meses antes. Era uma noite fria e, logo na entrada, viram os chimpanzés brincarem de criar sombras em uma das paredes. Em roda, os macacos usavam as mãos e os dedos longilíneos, mas não só: ficavam na ponta dos pés e estufavam os peitos ossudos em direção aos canhões de luz. Como se forjassem as próprias criaturas a serem observadas. Lívia se assustava como nenhum dos macacos sorria — parecia um ritual decisivo, um ato que não deveria ser visto; ao seu lado, Laura, com a testa encostada nas grades, ria e imitava o pai. Na mesma parede, os dois projetavam coelhos enormes com as mãos sobrepostas e os dublavam.
Tales ainda tinha bigodes pretos e um emprego. Atuava como vendedor de uma importadora de bebidas. Um dos clientes, uma marca de refrigerante, patrocinava aquele zoológico noturno, montado como circo, com tendas erguidas em um chão de brita, ao lado de um parque desativado. Ele havia ganhado três ingressos para um sábado. Vera, exausta das aulas que dava de segunda à sexta-feira, ficou em casa e dormiu enquanto assistia, nua e com uma toalha bege enrolada na cabeça, a um filme sem som no sofá. Lívia lembrava de, na volta do espetáculo, ter dito a uma mãe sonâmbula que sentia uma tristeza profunda ao encarar os olhos dos animais. Tanto dos gigantescos, dos quais só guardava partes isoladas dos rostos, quanto dos menores. Aliás, principalmente dos menores.
A mãe, enrolada na toalha, beijou a ponta do nariz da filha e disse para ela não se preocupar. Deixaria a luz do corredor acesa. Laura já dormia no quarto com a roupa do passeio. Lívia, enquanto subia cautelosa a escada de beliche, deteve o olhar no rosto da irmã. Parecia mais velha e mais bonita do que nunca. Sorria como se sonhasse com os animais cheirando suas mãos; como se, num gesto, pudesse reinar sobre eles.
Naquela noite, tomada por uma dor difícil de nomear, Lívia não dormiu. Essa sensação difusa, atravessada pela memória adulta, não era das mais honestas. Mas ajudava a explicar por que, naquela semana, depois de um aniversário de uma amiga da rua, Lívia decidiu que não emprestaria mais suas roupas para Laura. Sem avisar nem explicar os motivos, passou a guardar suas melhores peças dentro de uma mala de viagem. Fez isso também com o diário, as cartas, os sapatos e os CDs, trancados em um baú com chave.
Laura, irritada, um dia, na volta da escola, dilacerou a tampa da mala com uma tesoura, pegou as roupas da irmã e as trancou em outra mala, com outro cadeado. Depois, jogou a chave da irmã pela privada. O pai teve que serrar o baú para recuperar os objetos. As duas ficaram de castigo, sem se falar. Ao contrário das outras brigas, fingir no dia seguinte que nada tinha acontecido não surtiu, ao menos para a irmã mais velha, o efeito de sempre. Continuavam a se ajudar nas tarefas de casa e até contavam piadas sujas, isso não mudava. Mas as risadas pareciam vir de outras pessoas. Se fosse arriscar uma aproximação, Lívia diria que, quandoassistiam juntas a algo engraçado na tevê, riam como duas estrangeiras; duas pessoas que se encontram por acaso na sala de espera do dentista.
***
Laura não usava mais maiôs compridos. Saía do trailer com um biquíni florido de duas peças, descalça, e ficava na piscina até os dedos enrugarem. Lívia evitava ir até lá; preferia passar o dia em cima da bicicleta, uma bicicleta vermelha que já estava um pouco pequena para ela. Gostava de descer as ladeiras quase no limite do terreno do camping, onde as árvores eram imensas e os gatos e outros bichos iam se refrescar. Ela andava com um gravador no colo, gravando, faixa a faixa, os sons de cada animal. Muitas vezes, não sabia que bicho era e ia até o trailer perguntar para sua mãe. Nessa hora, ou perto disso, a mãe inventava algum animal exótico e pedia que Lívia fosse chamar sua irmã para o almoço.
A irmã mais nova estava sempre com um amigo ou amiga nova. Todos lembravam, principalmente, da dupla de primos: dois meninos com cabelos de índio que escalavam a mureta próxima à ducha e se lançavam às águas como ginastas. Laura não se lembrava do nome deles; às vezes, acreditava ser Felipe e Celso, noutras Carlos e Fábio. Recordava de gravarem, com canivete, as iniciais FLC nas pedras e nos troncos, quando um deles, o maiorzinho, cavava um canteiro para retirar uma sacola de moedas. Ele então pegava algumas e comprava picolés para os três na Cantina. O trio sentava do lado de fora sobre as mesas de concreto e assistiam aos pássaros perfurarem as nuvens.
Laura lembrava que o sol e o cloro deixavam os olhos dos garotos muito vívidos, como amêndoas líquidas. Talvez estivesse apaixonada por um deles, o menor, que tinha sua altura, mas tinha quase certeza que gostaria de namorar com os dois. Perguntava-se, ao reconstituir aquelas tardes, se a ideia de gravar as três iniciais não tinha partido dela.
Na noite em que os primos foram embora do camping, Laura não quis sair do trailer. Ficou na cama dos pais abraçada ao travesseiro, de frente à pintura de folhas esverdeadas que descolava da parede. Vera, para animar a filha, pediu para que Tales montasse uma fogueira no gramado em frente ao módulo. Lívia, a contragosto, buscou folhas e gravetos secos. Ela não saberia dizer quanto tempo se passou naquela colheita. Quando voltou, a noite parecia mais clara, e o pai e a mãe conversavam dentro do Corsa com os vidros fechados. Gesticulavam muito, os gritos eram abafados dentro daquela câmara escura; o pai, quando a mãe cobriu o rosto com as duas mãos, saiu com olhos perturbados e bateu a porta com força.
Lívia, sentada na grama, de olho nas ranhuras das estrelas, ouviu o pai pedir jornais velhos para ajudar a acender a chama. A filha mais velha foi até o porta-malas do carro, onde a mãe permanecia em silêncio, e pegou dois volumes. O fogo não demorou a crepitar. Tales acendeu ali um último cigarro antes de chamar Laura.
Nem Laura, nem Tales lembravam de estar na fogueira. Havia uma imagem, talvez irreal, contada por algum deles, em que Tales dormia com os braços em volta da filha caçula. Lívia se recordava da mãe sair do carro e se sentar ao lado dela. É provável que em algum momento tenha dito, sem olhar para a filha, que voltariam para casa no dia seguinte.
A filha mais velha guardava com carinho aquele momento. O rosto da mãe clareado pelo fogo, os vagalumes que pareciam se encher de brasas, o cheiro de ervas do shampoo que se misturava à lenha. No fogo, ela escreveria mais tarde, todo rosto se torna outro.
Se Lívia se lembra bem, naquela noite ela e a mãe assistiram aos cavalos do Centauro correrem livres para fora do camping. Selma os havia libertado naquela que seria a última noite antes de anunciarem a falência. O barulho dos cascos na terra seca era como o de um batalhão que enfim negociava uma trégua. Mas isso podia muito bem ser uma invenção.
Guilherme Pavarin é escritor, jornalista e pesquisador, autor de “O maquinário fantasma” (Urutau, 2022).