Bruno Ribeiro
A primeira vez que Rosângela abortou, parecia que o mundo iria acabar. Ela chorou por dias. Vomitou. Sentia dores indistintas pelo corpo e uma sensação geral de náusea e mal-estar. Passava todas as manhãs e tardes perambulando pelos corredores da casa como se fosse um zumbi. Eu observava toda a situação com preocupação. Na verdade, me sentia culpado, muito embora o olhar dela em minha direção fosse melancólico, meio morto. Ela parecia compreender o que eu sentia, apesar de tudo pelo que passava. Ela não me culpava por nada.
O segundo aborto de Rosângela não teve um efeito tão drástico. Ainda assim, por dias a fio ela colocava uma velha cadeira de madeira junto da janela de nosso quarto e olhava para o céu a distância. Posso fazer pouca coisa além de imaginar o que ela esperava ver; talvez tentasse encontrar a imagem do próprio Deus para culpar por seus problemas; talvez o procurasse para pedir que as crianças não-nascidas tivessem uma nova chance, ou talvez que os afastasse do limbo; talvez procurasse enxergar nas nuvens os rostos não-formados de nossos filhos. Seja quais fossem os motivos, ela pouco se apercebia de minha presença, e quando o fazia, tinha aquele mesmo olhar compreensivo.
As reações aos abortos subsequentes foram muito mais brandas, tanto da parte dela, quanto da minha. A realidade inegável dos abortos se impunha sobre nós, e ficava cada vez mais fácil de suportar. Três, quatro, cinco; depois do sexto, nossas reações se resumiam à apatia, ou, quando muito, a um “Oh!” abafado. Sete, oito, nove; foi após o décimo que tudo aconteceu. A guinada em nossas vidas. O momento infame e sublime da verdade; o clímax de nossa história pessoal.
Eu era o motorista; a estrada à nossa frente estava coberta de uma escuridão que impedia que eu visse um centímetro além da iluminação do farol, o que me deixava tenso. Era uma estrada vazia, silenciosa, devorada por limiares e sombras, pouco usada e longe de casas ou da própria cidade, de modo que foi uma surpresa ver uma criança parada no meio da pista. Ela surgiu do nada, parada sobre o asfalto. No reflexo, puxei o carro rapidamente para o lado. Ouvi o grito estridente e apavorado de Rosângela no momento em que o veículo saiu da pista e despencou, caindo diretamente sobre o rio que estava ao lado.
Com o motor inutilizado, senti o sangue grosso escorrendo pela minha têmpora. Assim que minha visão focou novamente, pude ver dois vultos na frente dos para-brisas: sobre a película da água turva, estavam duas crianças parecidas com aquela primeira que me forçara a jogar o carro. Elas estavam vestidas com casaco grosso e gorro, o que me impedia de discernir quaisquer traços fisionômicos ou mesmo o sexo delas. Quando olhei para o lado, percebi que Rosângela estava inconsciente, e levantei com muito custo os dedos em direção a seu pescoço. Tinha pulso. Levei a mão para junto de seu nariz. Estava respirando. Olhando de relance no retrovisor, percebi outras crianças, vestidas da mesma forma padronizada. Talvez fossem irmãos. Não sei. Muitas crianças. Eu senti a água entrar aos poucos e, ao nosso redor, o peso do carro aumentava com as crianças concentradas sobre ele.
“Vocês não deveriam estar aqui”, eu resmunguei com a voz fraca, “deveriam estar em casa”.
Eu tinha certeza de que essas crianças nos encaravam sem piscar. Elas eram silenciosas, andavam sobre o carro, sobre o rio, espectros de nós; em nenhum momento um som escapou delas. Pareciam sombras. Elas levantaram as mãos ao mesmo tempo, flutuando. Eu encontrei forças para abrir o meu cinto e a porta do carro. Saí aos tropeços, no exato momento em que a água engoliu o veículo de uma vez por todas. Comecei a nadar, exausto, o rio parecia ter se tornado um mar calmo, porém selvagem. Poucos segundos antes de meus olhos se fecharem, pude ver quando as crianças, nadando como tubarões, se juntaram ao redor do carro que afundava e pareciam conduzi-lo tal qual uma carruagem que levava lentamente Rosângela para as profundezas indiferentes do rio, onde nada os incomodaria.
Bruno Ribeiro é escritor, tradutor e roteirista, autor de “Porco de Raça”.