Mariana Salomão Carrara
O interfone tocou. Eu detestei, disse que não ia atender, mas disse para ninguém, de modo que fui até a cozinha atender. Ainda pedia licença aos móveis para entrar nos seus domínios, todos doloridos no luto amadeirado, era perigoso ficarmos ocos se não respeitássemos nossos espaços.
Pedi licença baixando os olhos sob o batente da porta e o interfone ainda insistia. Atendi e me sentei na copa esticando o fio, bem na sombra treliçada do muxarabi, que me dá uma espécie de paz de selva. Era a voz dela. A voz detestável rouca de muito cigarro bebida atrofiada de tantos silêncios ensaiando uns cumprimentos irritantes de titubeios e melindres, o que diabos ela queria.
Se podia descer para falar comigo uns minutos. O que ela podia querer, meu deus. Insisti que falasse pelo interfone.
Madalena ainda totalmente estragada na minha porta. Queria saber se o advogado dela poderia entrar em contato comigo, e a partir daí as palavras dela foram embolando num eco absurdo na minha sala, e eu não tive condição de entender que havia essa preocupação, que eu fosse processar a família, que eu quisesse sugar a herança até que não sobrassem vestígios daquele homem medíocre que tinha existido sem propósito nenhum, e na hora a palavra advogado fazia parecer, ao contrário, que eu estava em perigo, que eu devia o que quer que fosse àquela gente, me deixa em paz, mulher, os olhos dela espiando as avencas mortíssimas pelos móveis, e no instante seguinte as mãos dela na minha direção segurando os meus punhos, e depois sustentando a minha cabeça, e enfim entendi que o meu corpo ainda vacilava, as emoções fluidas, e eu de repente esguichando entre os pés dela um vômito imprevisível e só então ela olhando as elevações do meu vestido, reparando naquela gravidez que ia me cavando por dentro o mesmo tanto que me distendia por fora, a barriga que ia se despegar de mim a qualquer minuto e tombar no chão. E então, aí sim, ficou evidente que ela não me deixaria em paz, ela não me deixaria nunca.
Eu preciso de ajuda para buscar um quadro, você poderia ir comigo. Claro, eu vou pra você, me passa o endereço. Não, precisa de duas pessoas, é deste tamanho, uma só não consegue vir carregando. Tem certeza, Ana, eu posso tentar. Tenho, certeza absoluta, Madalena, completamente absoluta, você poderia ir comigo agora? Agora, é que o advogado… tudo bem, eu aviso, vamos. Vou limpar isto. Eu limpo. E então ela entrando pela cozinha sem pedir licença alguma a mim ou aos móveis doloridos, pisando firme com um salto marcando de sons novos o assoalho calado havia semanas, desbravando o armário dos fundos atrás de pano de chão e produtos, e eu fechei o olho e tentei somar aqueles sons à naturalidade da casa. Lavei minha boca e fomos.
O silêncio no elevador, a caminhada lado a lado na rua sem que um assunto conseguisse nascer vivo, ela segurou uma ponta do quadro e eu a outra, e assim em duas avançamos de volta sem tanto esforço, e o quadro já não me pareceu tão impossível, nem tão imenso, os pedestres desviavam tranquilos, e quanto mais leve o quadro ficava, mais se dobravam meus joelhos sob o peso daquela caminhada, ela na frente com as mãos nas costas segurando uma quina, eu atrás sem que ela visse o choro, no farol achei que ela fosse olhar para trás e me ver desmanchando sem mão livre para enxugar os olhos, mas ela não olhou, não sei se porque também chorava, e então cansamos juntas aqueles músculos e ao mesmo tempo decidimos apoiar o quadro mais pra cima no ombro, e de repente era um caixão que levávamos nesse cortejo breve.
Madalena pegou no armário minhas ferramentas. Fizemos medidas imprecisas, mas era bom se concentrar em qualquer coisa. Ela saiu furando minha parede, um novo barulho para eu administrar, pedi desculpas à parede que também não estava esperando, Madalena não dava qualquer aviso dos seus ímpetos.
O quadro ficou majestoso acima do sofá, ela comentou que amava aquele filme, não consegui dizer nada um filme tão obscuro me irritava que ela conhecesse, o filme que era meu e do André, ela sorrindo ampla para o quadro, orgulhosa dele. Ela foi embora mais forte do que tinha entrado, mais erguida, encontrou um novo propósito, uma menina que na solidão das férias acolhe um pássaro doente.
Mariana Salomão Carrara é escritora e Defensora Pública, autora de “Não fossem as sílabas do sábado” (Todavia, 2022).