Santiago Nazarian
“Oi.”
“Oi. Está tudo bem? Por que me ligou?”
“Entra…”
[Suspiro] “Não posso ficar muito, Caio, a Amanda…”
“Não disse pra ficar muito, só pra entrar.”
[Caio dá as costas e recua dentro do apartamento. Marcos o segue.]
“Você disse que era urgente…”
“Precisava falar com você.”
“Pode falar…”
“…”
“Não podia falar ao telefone?”
[Caio dá uma pequena tossida.]
“Precisava ou queria falar comigo?”
“Quer beber alguma coisa?”
[Marcos levanta uma mão em negativa.] “Vim guiando. E não posso ficar mesmo…”
[Marcos caminha até a janela. Olha para fora.]
“Estacionei meu carro na frente daquela creche; é seguro?”
[Caio pega um copo de vodca. Bebe dando de ombros. Engole e tosse.]
[Marcos vai até ele. O abraça. Dá um beijo no rosto. Um suspiro…]
“Vou embora, tá? Não devia estar aqui.”
[Caminha para a porta.]
“Eu estou doente…”
[Marcos se vira. O observa por uns instantes. Vira-se novamente para a porta.]
“Você não está doente.”
“Peguei o resultado hoje.” [Caio tosse.]
[Marcos para. Vira-se.]
“O resultado?”
[Caio assente.]
“E é…?”
[Caio assente.]
“E me chamou aqui para quê?”
[Caio dá de ombros.]
[Marcos dá de ombros.]
[Caio tosse.]
“Quer parar com essa tosse?! Quer me provar que está doente?!”
“Você precisava saber…”
“Precisava ou queria que eu soubesse?”
“Eu queria que você soubesse porque você precisava saber. Você sabe… Digo, você também pode estar…”
“Não estou sentindo nada.”
“Pode estar assintomático. Leva um tempo…”
“Eu sei. Mas o que quer que eu faça?”
“Não sei. Eu te chamei aqui pra gente decidir juntos… É responsabilidade dos dois.”
“Você diz como se fosse um bebê.”
[Caio ri.] “De certa forma é, né? Nosso reencontro dando vida a um novo organismo…”
“Como o alien saindo da barriga da Sigourney Weaver.”
“Oi?”
“Uma nova forma de vida, alienígena, como o alien…”
“Eu sei, mas o alien nunca saiu da barriga da Ripley.”
“Como assim?”
“Você não assistiu ao filme? Tem alien. Tem Sigourney Weaver. Tem o alien saindo da barriga. Mas não é da… Ah, você sempre preferiu ignorar os detalhes.”
[Marcos dá de ombros.] “Você entendeu.”
“Eu lembro de quando a gente era moleque, eu, você, o Dário, e via os filmes de kung fu, que alugava na Hobby Video, você acelerava para ver só as partes das brigas, deixando toda a história de fora…” [Tosse]
“Quem quer saber a história de um filme de kung fu?”
“Eu queria.”
“Você nunca disse.”
“Estou dizendo agora.”
[Marcos abre as mãos]. “Então agora você pode maratonar Bruce Lee na Netflix, Caio.”
“Minha televisão não é smart… Isso parece o nome de uma música dos Mutantes.”
“Oi?”
“Minha televisão não é smart. Eu não tenho acesso à Netflix.”
[Marcos suspira.]
“E duvido que Netflix tenha os filmes do Bruce Lee…”
“Caio, essa conversa não está levando a lugar nenhum, eu preciso ir…”
“Tá, mas como fazemos?” [Tosse]
“Fazemos o quê, criatura?”
“Marcos, você também deve estar doente. Sua esposa está grávida. Você não pode sair daqui e fingir que não tem nada acontecendo.”
[Marcos se afasta da porta.]
“Minha esposa não tem nada.”
“Ainda. Mas pode ter…”
“Claro… Agora que você me chamou aqui!”
“Nem vem…”
“E eu vim até aquiiii, aaaah… Porra! [Marcos esfrega o rosto.] Te abracei, te dei um beijo…”
“Cara, eu não estou com lepra…”
“Antes estivesse!”
[Caio torce a boca.]
“Lepra é mais difícil de transmitir, Caio!”
[Tosse.]
“Como posso voltar pra casa agora?”
[Caio dá de ombros.]
“Você tinha que ter me avisado antes, por telefone, me preparado… O que você quer que eu faça agora, fique de quarentena aqui, com minha esposa grávida de 33 semanas?”
“Essas coisas não se avisam por telefone…”
“Caio, eu não sou responsável por você. Tenho uma esposa, um filho prestes a nascer, uma família…”
“Achei que eu era sua família.”
“Você é meu primo… não meu namorado.”
“Primo é mais família do que namorado. Ainda mais primo com quem a gente trepa…”
“A gente trepou uma vez, semana passada.”
“Oi? Tá com amnésia? E todas as outras vezes? Aos treze, aos dezenove…”
“Isso é normal, coisa de moleque. Todo primo faz isso, troca-troca, essas coisas…”
“Sim, aos treze, não aos trinta… e tantos.”
“É que você nunca superou…”
“Primo é para sempre.”
[Suspiro.]
“E eu cheguei antes…”
“Chegou antes, mas eu preciso ir. Só falei pra Amanda que ia dar uma passada na casa do meu primo…”
“Jogar uma peladinha?”
[Marcos fecha a cara.]
“É desculpa de hétero topzera…”
“Só falei que ia passar aqui…”
[Caio tem um acesso de tosse.]
[Marcos se senta no sofá, com a cabeça entre as mãos.] “Puta merda…”
[Caio controla a tosse.] “Marcos, olha… Eu estou bem… Estou me sentindo bem [tosse]. Só essa tosse, febre baixa… Tenho acompanhamento. Te liguei mesmo porque achei que precisava te avisar… Não que eu ache que você se importe como me sinto, mas se eu estou positivo, você também deve estar. E quis que você soubesse exatamente porque sua esposa está grávida.”
“E o que vou fazer, vou contar pra ela?”
“Não precisa contar tudo, mas…”
“Vou voltar pra casa e evitar contato com ela até o bebê nascer?”
“Talvez se você fizesse o teste…”
“Vou ficar de quarentena aqui trancado com você?!”
“Desculpa não poder preservar sua vidinha perfeita, Marcos. Mas você é responsável por isso. Eu não tenho esposa, não tenho marido e não minto pra ninguém. Se eu trepo com meu primo desde os treze anos de idade, é problema só meu. Eu nunca fingi que era hétero. Você que criou toda essa vida de família tradicional brasileira, como se nada nunca tivesse acontecido. E agora vem querer fingir que nada nunca não aconteceu…”
“Nem vem com essa, como se eu tivesse uma obrigação com você desde os treze anos, pelo que aconteceu semana passada. Eu sei que você teve seus namorados, trepou com metade de São Paulo…”
“Ahhh, e disso você tem ciúmes ou inveja?”
“É disso que você trouxe essas DOENÇAS!”
“Rá! Sei, como se só pudesse ter sido eu…”
“… Olha… Eu não vou discutir com você. Tem uma criança envolvida, Caio. Meu filho. Seu sobrinho…”
“Sobrinho não, sobrinho neto… não…”
“Oi?”
“Não, não é sobrinho neto… filho do meu primo, sobrinho de segundo grau, isso? Ou primo de segundo grau? Sobrinho-primo?”
“Que seja; não importa pra você?”
“O que você quer que que eu faça? Ah, eu contribuí com o chá de bebê, lembra?”
“Como vou voltar pra casa?”
“É, agora vai ficar mais difícil…”
[O celular de Marcos toca. Ele faz sinal de silêncio para o primo]
“Oi. Oi meu amor. Estou aqui com meu primo. Isso. Aaaacho que na pasta de notas. Isso. Logo eu te aviso.”
[Marcos desliga. O primo olha para ele.]
“Bom… vai ficar mais difícil voltar você voltar pra casa agora…”
“É claro que vai ficar mais difícil. Você vem com esse papo de doença.
“E agora levaram seu carro…”
“Quê?”
[Marcos corre até a janela.]
“Não tem placa de guincho…”
“Porra, você disse que era seguro parar aqui…”
“Eu não disse nada.”
[Marcos esbraveja.] “Caralho! Você quer foder mesmo comigo!”
“Na verdade, não…” [Caio dá um sorrisinho irônico.]
“Vai tomar no seu cu.”
[O telefone de Marcos toca novamente.]
“Oi, querida. Não, na pasta de notas fiscais. Isso. A senha é a mesma. Beijo.”
[Caio tosse. Olha para o primo.]
“Sua esposa acessa seu computador…”
“Claro.”
“Onde então você guarda seus pornôs, os acessos aos vídeos proibidos…”
“Eu não acesso nada disso.”
“Hum, sei… Então devo ficar lisonjeado? Você não tem tesão em homem nenhum além de mim? Não vê nenhum pornozinho gay? Logo você, que gosta tanto…”
“Caio, eu gosto de mulher. É só que a minha tá grávida e… eu tive uma recaída…”
“Porque ela tá gorda?”
“Vai à merda.”
“Quer saber o que eu acho?”
“Não, não quero… Me dá uma vodca dessas, vai.”
[Caio serve o primo. Ele dá um gole.]
[Eles bebem em silêncio.]
“O que você acha afinal?”
“Oi?”
“Você perguntou se eu quero saber o que você acha…”
“E você disse que não queria.”
“Vai à merda.”
“Isso também você já disse…”
[Os dois bebem em silêncio. Então Caio se pronuncia.]
“Eu acho é que você não gosta de mulher de verdade…”
“Rá, seu sonho…” [Marcos vira a vodca.]
“A Amanda sempre foi reta, seca, mal tinha peito. Sempre foi meio… andrógina. Daí na gravidez ela ganha corpo, peito…”
“Vai à merda. De novo. E me dá mais uma vodca.”
[Caio serve o primo. Vai até o som e coloca Roxy Music. Brian Ferry canta: Now the party’s over, I´m so tired.]
“Que musiquinha de motel, Caio…”
“Acho que você frequenta melhores motéis do que eu.”
[Eles bebem em silêncio. Caio olha pela janela. O céu pesado, as nuvens se juntando. O ar adensa, adensa, mas não despenca.]
“Não é possível que o apocalipse seja assim, tão silencioso…”
“Oi?”
“Lembrei de um conto. Um casal trancado em casa discutindo a relação porque o mundo lá fora foi tomado por zumbis.”
“É. Bem nossa relação. Só que não somos um casal. E o mundo lá fora não foi tomado por zumbis…”
“Tem certeza?”
[O telefone de Marcos toca novamente.]
“Oi. Não… Devia estar lá… Olha, eu… Não, não vou demorar… O Caio tá com uns problemas aqui, tô dando uma força…”
“BEIJO, AMANDA! LOUCO PRA CONHECER O BEBÊ!”
[Marcos tapa o telefone.] “Não… Tá…” [Para Caio.] “Ela mandou um beijo de volta. Tá…”
[Ele desliga. Olha para o primo. Caio comprime os olhos…]
“Quê, Caio?”
“Preciso te contar uma coisa…”
[Marcos bufa.] “Mais uma? Vai, conta…”
“O bebê que a Amanda está esperando…”
“Ai, não vem com merda, tá? Não vem de brincadeira com meu filho…”
“Não, é sério… Na verdade… Ele é meu filho…”
[Marcos mostra o dedo do meio pro primo.] “Como você fala merda…”
[Caio ri.] “Tá, é zoeira, mas…”
“Você tá bêbado já.” [Marcos vira a vodca.] “Me dá mais uma.”
[Caio serve o primo.] “Mas, será que a Amanda não desconfia de nada? Não é possível…”
“Não é possível por quê, Caio? Eu não tenho uma vida paralela, uma identidade escondida. Eu trepei o quê, três vezes na vida com meu primo?”
“Oito.”
“Rá! Pra você foi importante mesmo, né? Pra guardar cada uma…”
“Bom, se isso não é uma vida escondida…”
“Caio, isso é coisa que ficou da nossa vida de moleque… Eu não gosto de homem.”
“E a Amanda?”
“O que tem a Amanda?”
“Será que ela… Ela deve desconfiar. Está ligando direto… Ela sabe que eu sou gay, não sabe?”
“Sei lá… Deve saber, né?”
“Deve saber por quê?”
“Ué, você mesmo não disse… Deve saber…”
“Porque eu dou pinta?”
“Caio, quem não sabe que você é gay?
“Whatever. Ela sabe que sou gay. E você vem aqui me visitar… Quer saber o que eu acho?”
[Bufa] “Fala. Você vai falar de qualquer jeito.”
“Acho que é um casamento de conveniência. Você gosta de homem, ela gosta de mulher, mas os dois queriam ter uma família, um casamento tradicional…”
“A Amanda não gosta de mulher.”
“Que seja. Talvez ela seja assexuada, então.”
“Rá! Isso ela não é MESMO. Você não conhece minha mulher.”
“Talvez você também não. Já que ela não conhece você.”
“Talvez. Mas vamos ter um filho. Pode apostar que o filho é meu. Isso é real. E é para sempre. Essa é a verdadeira família…”
“Essa é a verdadeira família tradicional brasileira…”
[Marcos estende o copo vazio. Caio o serve novamente.]
“Nem vem. Esse é um elo que não pode ser desfeito, Caio. O filho será de nós dois para sempre. Você nunca quis? Você nunca quis ter uma família?”
“Eu tenho família. Meus pais. Minha irmã. Amigos. Até você…”
“Estou dizendo alguém para cuidar de você, Caio…”
“Eu posso cuidar de mim mesmo.” [Tosse.]
“Então por que me chamou aqui?”
“Porque você também precisa se cuidar…”
“Olha…”
“…se sua esposa tivesse fazendo isso direito, você não estava aqui.”
[Bufa.]
“Desculpa, isso foi meio escroto, até homofóbico…”
“Pode ter certeza de que se eu quisesse DR eu não estava aqui mesmo… Ficava em casa…”
“Ahhh, então as coisas não são tão perfeitinhas assim por lá…”
[Marcos estende o copo.]
“Segura a onda.” [Caio serve Marcos.] “Tá bebendo muito rápido.”
“Bom, não vou mais dirigir mesmo…”
“Mas a vodca tá acabando.”
“Sirva uísque!”
“Comam brioches!”
[Os dois riem.]
[Marcos estica a mão e toca o braço de Caio. Ele se esquiva.]
[Caio tem outro acesso de tosse.]
[O telefone de Marcos toca. Ele não atende.]
[…]
“Caio… preciso ir…”
“Vai embora como? O que vai fazer?”
“Pego um táxi. Faço um teste. Eu me viro.”
“E sua esposa? Seu filho…”
“Minha esposa e meu filho são problemas meus, Caio…
“…”
“Se cuida, tá?”
[Marcos se levanta. Vai até a porta.
“Marcos, espera…”
[Marcos se vira.] “Quê?”
[Caio só acena com a mão.]
[Marcos sai.]
[Caio caminha até o som. Brian Ferry está em silêncio – Now the party´s over…– Pensa em que música colocar, então escuta o som da chuva.]
[Começa a chover lá fora.]
[Será também que da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?- Ele se lembra de “A Montanha Mágica”.]
[Caio se senta ao sofá…]
[Saca o celular.]
“Dário. É o Caio… seu primo. Preciso falar com você com urgência. Pode dar uma passada aqui?”
Santiago Nazarian é escritor, tradutor e roteirista, autor de “Fé no Inferno” (Companhia das Letras, 2020).