Julia Raiz
Eu queria contar a história do Meu País do começo, talvez falar dos seus antepassados, da sua origem, ancestralidade, mas não sei nada disso, apesar do Meu País ser da minha família. Não sei onde a mãe do Meu País nasceu e nem em que ano, não sei de quem sua mãe é filha ou de que povo descende. A única coisa que eu sei é que ela era irmã adotiva da minha mãe, a irmã caçula.
Não sei se me contaram ou eu que inventei uma história que o pai do Meu País era salva-vidas e morreu afogado tentando salvar uma criança. A minha tia, mãe do Meu País, roubava coisas quando era pequena, eletrodomésticos, o pouco dinheiro dos pais e um dia roubou uma moto. Entrou numa concessionária, pediu um teste drive e não voltou. Eu lembro dela dirigindo uma Saveiro branca, eu no branco da frente. Quando eu tinha seis anos, eu disse que a tia era idêntica a uma mulher famosa e ela não me respondeu. Minha tia morava numa rua perto da minha casa. Quando eu ia visitar Meu País, ele estava sempre jogando videogame, almoçando na frente do videogame, lanchando na frente do videogame e jantando na frente do videogame. Quando ele não estava na frente do videogame, estava na frente da televisão e a cabeça dele, às vezes, pendia para o lado sem querer.
Meu País era quieto, agora que eu paro para lembrar, eu não sei como era a voz do Meu País criança. Quando foi morar com a gente, ele mastigava meu fogãozinho de brinquedo, o botijão de gás e o carrinho de supermercado. Meu País só saía da frente do videogame para brincar de furacão. Brincar de furacão era arrumar as nossas coisas numa trouxinha de pano, amarrar as pontas e ficar na estrada esperando um furacão passar. O furacão ia levar a gente para outra Terra, então esperávamos discutindo o que poderia ter lá. Era a coisa mais legal que a gente fazia.
Quando meu irmão mais novo nasceu, eu acho que foi a minha tia que dirigiu a minha mãe até em casa, com a Saveiro branca. Meu irmão era o bebê mais lindo e cheiroso do mundo, ele cheirava a doce de leite e eu não deixava ele mamar de tanto beijo. Eu tinha seis anos e o Meu País também. Existe uma foto do berço que eu e o Meu País dividíamos quando eu tinha quatro meses e ele seis. A cabeça do Meu País era bem maior que a minha, foi a única vez que eu me senti mais nova do que ele.
Um dia fomos passear na cidade eu, minha mãe, meu padrasto e meus irmãos, e quando voltamos à noite tinha um telegrama debaixo da porta. Minha mãe pegou o papel do chão e foi para o quarto que não tinha porta, mas tinha um pano na frente servindo de porta. Ela e o meu padrasto brigaram naquela noite. O meu padrasto ficou bem bravo no dia que eu falei para o Meu País que a mãe dele não estava viajando e nem ia voltar mais. A mãe dele tinha morrido. Minha tia, mãe do Meu País, foi assassinada pelo ex-marido. Eu não sei porque eu contei isso para ele, desse jeito.
Quando eu tinha 13 anos, um amigo da escola disse que achou muito estranho eu ter dado risada quando contei da morte da minha tia. Eu disse que era porque eu ria quando estava nervosa. O meu padrasto aumentou o som da tevê e disse o nome dela, enquanto o Datena falava de assassinato passional e a repórter mostrava o estacionamento com uma mancha enorme de sangue no chão. Os policiais mataram o padrasto do Meu País, eu fiquei sabendo depois. Parece que ele tinha outros filhos mais velhos, essas pessoas nunca conheceram o Meu País.
Quando minha tia foi assassinada, as donas do colégio onde o Meu País estudava queriam ficar com a guarda dele. A minha mãe também queria ficar com Meu País e eu não tenho certeza sobre o que o meu padrasto pensava, acho que ele previa dor de cabeça. O irmão mais velho da minha mãe deixou bem claro que não ajudaria com nada. Eu acho que o Meu País ficou morando lá na casa da dona da escola por um ou dois meses. Elas tinham dinheiro, a velha e a filha dela. Ela também tinha uma neta e a menina tinha um salão cheio de brinquedo. Um salão cheio de brinquedo e com janelas de vidro enormes como uma grande vitrine. Em casa, eu e o Meu País fazíamos nossos próprios brinquedos de papelão. O tabuleiro e todas as peças e inventávamos as regras e depois não brincávamos com o jogo. Em vez disso, jogávamos baralho.
De vez em quando, Meu País roubava dinheiro em casa para comprar salgadinho para os amigos do colégio. Uma vez Meu País e o nosso vizinho roubaram um relógio caro de um menino da escola e o Meu País foi expulso do colégio e da casa da dona do colégio. Meu País agora morava com a gente definitivamente na casa sem forro e não ia mais pra Disney.
Dois anos depois, eu fui estudar no centro da cidade e Meu País entrou na escola onde eu estudava antes, a escolinha do curral ou Escola Municipal Helena B. Soares. Na primeira semana de aula, Meu País levou uma adaga para escola, uma adaga lá de casa. Eu não lembro por que a gente tinha uma adaga em casa, mas ela era muito bonita, mesmo faltando algumas pedras no cabo. Nos finais de semana, a gente atravessava a rodovia para comprar cerveja ou Coca-Cola por um real e duas ou três vezes achamos dinheiro no chão, uma fortuna de cinco reais. Também nos finais de semana, a gente tentava vender para os vizinhos coisas que a gente não queria mais. No meu estojo retangular, com várias minis divisórias, tínhamos cartões usados, pedaços de borracha, pulseiras e bolinha de gude. Ninguém comprava nada. Eu sabia onde minha mãe guardava umas pedrinhas verdes que pareciam valer alguma coisa, mas achei melhor não contar para Meu País. Uma vez meu irmão mais velho chegou em casa com o olho roxo. Brigou na escola, na mesma escola da dona que queria adotar Meu País, acho que meu irmão foi expulso também, não lembro. Criança que não paga é mais fácil ser expulsa. Outra vez, meu irmão mais velho raspou a cabeça do Meu País e só deixou um moicano. O meu padrasto ficou muito bravo.
Peço licença ao Meu País para contar um sonho que eu tive antes de a gente se mudar da primeira casa em que moramos juntos. Eu passava pela estrada e olhava a nossa casa de longe e todo o mato que tinha na frente tinha sido cortado. Todas as árvores não existiam mais. Foi muito triste.
Nem eu, nem Meu País éramos mais crianças quando a gente se mudou para o centro e brigava para ver quem ia buscar meu irmão mais novo na escola, para decidir quem ia lavar a louça, quem ia recolher as roupas do varal com todas aquelas abelhas grudadas nas cordas e pregadores. O meu irmão mais velho às vezes pendurava Meu País pelo pé na sacada, Meu País gritava. Meu País não trabalhou com a minha mãe como eu e meu irmão mais velho, porque ele tinha costume de roubar os clientes. Um dia, ele chegou para mim e me pediu dinheiro emprestado, uma “questão de vida ou morte” e eu não emprestei.
Meu País gostava de agradar os amigos, gostava de coisas caras e não gostava de não ter dinheiro. Meu País não gostava nem um pouco de não ter dinheiro. Ele se interessava por meninas chatas e com dinheiro. Ele achava o cúmulo eu me interessar por meninos sem dinheiro. Ele achava o cúmulo eu me interessar por tantos meninos e ele nem sabia que eu me interessava por meninas também. Eu só lembro do nome de duas meninas por quem ele se interessou. Uma delas não era tão chata, eu acho, mas tinha dinheiro e isso para mim era absurdo, uma traição. Quando a gente se mudou do centro, eu sabia cada vez menos do Meu País. Os bonés de moda vieram e ele arranjou um, os tênis da moda vieram e ele arranjou um. Meu País se tornou num expert em achar meus esconderijos. Minha mãe dizia que essa capacidade é natural dos ladrões.
Às vezes, minha mãe conversava com o Meu País e dizia coisas muito bonitas sobre ele ter amor no coração que, para minha mãe, significava dizer que ele estava com Deus. Outras vezes, ela gritava muito e dizia que ele era igual a minha tia, irmã dela. Minha mãe acreditava em karma. Meu padrasto dava longos sermões pela madrugada, fazia Meu País usar golas altas que ele odiava e espancava Meu País todas as vezes que ele fazia alguma coisa errada e quando ele não fazia também.
Uma vez, de madrugada, Meu País estava me acompanhando até o ponto de ônibus e me contou que alguma coisa, que eu não me lembro o quê, tinha sumido, alguma coisa muito importante e valiosa e que o meu padrasto ia matar ele se descobrisse. Ele começou a chorar e eu tentei confortá-lo como eu costumava fazer. Quando eu entrei no ônibus, chorei a viagem inteira de uma hora e meia até o trabalho. A gente nunca mais compartilhou um momento como aquele.
Quando eu entrei no colegial, Meu País parou de estudar. Acho até que foi antes, não me lembro. A minha mãe não ficou nada feliz. Na mesma época, os vizinhos fizeram um abaixo-assinado para nos expulsar do lugar onde morávamos, acho que por causa dos gritos e dos latidos e do cheiro de merda. Eu não sei por que o abaixo-assinado não foi para frente, talvez eles não fossem organizados o suficiente.
Ouvíamos histórias de que Meu País tinha arrombado uma casa na rua de baixo. Eu não sei se ele conseguiu roubar alguma coisa. Se eu não me engano, a casa que ele roubou ou tentou roubar era de um coronel da aeronáutica que depois seria candidato a prefeito da cidade. O meu primeiro voto, aos dezesseis anos, foi para ele. O coronel ganhou, mas não deu tempo de assumir, acabou morrendo de um estranho ataque cardíaco. Meu País nunca votou, nem tinha título de eleitor, nem identidade, tinha perdido todos os documentos há tempos.
Quando Meu País não estava de máscara ou com medo pelos cantos, ele chorava. Agora me lembrando bem, posso dizer que Meu País chorava com frequência. Gosto de pensar que ele chorava só na minha frente. Era para mim que ele pedia ajuda quando precisava, mas na maioria das vezes eu não fazia nada. Talvez porque eu não conseguisse fazer nada e isso me dá pesadelos até hoje. Eu fico pensando se Meu País sonha ou se tem pesadelos.
O Natal do ano seguinte foi o primeiro que a gente passou sem Meu País. Ele tinha sumido há alguns meses. Eu tinha ficado muito aliviada e, em vez de na edícula, eu agora dormia no sofá. Uma tarde eu estava assistindo à televisão e um menino de cabeça raspada apareceu na janela da sala. Era Meu País. Ele estava com as unhas sujas e as mãos grossas, disse que trabalhava numa construção. Acho que Meu País comeu muito aquele dia. Meu padrasto não o aceitava mais em casa. Minha mãe deve ter chorado tantas e tantas vezes, eu não sei dizer.
Uma vez, um ex-vizinho nosso, um amigo do Meu País, foi nos visitar. A gente se conhecia desde criança. A carteira dele sumiu e acho que os pais dele contaram para o meu padrasto o que tinha acontecido. Meu padrasto bateu no Meu País e tinha sido meu irmão mais novo que pegou a carteira do menino. Ninguém disse nada. Eu não consigo pensar no Meu País como um homem adulto, ele sempre vai parecer um corpo magro no chão, dois olhos olhando sei lá pra onde.
Quando o Meu País nasceu, a minha mãe que amamentou ele, eu não sei por que. Nós mamamos na mesma mãe, o que faz da gente irmãos. Um dia toda a molecada estava na rua conversando e um menino comentou sobre o meu corpo. Meu País respondeu dizendo que o menino não sabia como eu era sem camiseta, que eu tinha uma barriga gorda com pelos. No dia que a gente se mudou para aquela casa, eu e o Meu País cantamos juntos na sacada. Uma tarde quente, tudo era novidade e o Meu País tinha uma voz muito bonita e aprendia inglês muito mais rápido do que eu.
Dezessete anos nós moramos juntos antes de eu sair de casa. Quando eu voltava nas férias, às vezes ele estava, às vezes não. Meu País me acusava de me sentir melhor só porque eu fazia faculdade. Ele estava certo. Uma vez ele me disse que queria fazer curso de letras e ser professor de inglês, eu fiquei animada. Mas tinha o supletivo para completar e Meu País nunca nem lavava a roupa dele. Vivia vestido com peça suja, amarrotada, mas de marca. Ele não acreditava em nada e começava a perder cabelo na testa. Minha mãe sempre gostava de ver ele comendo salada, um prato enorme de salada. Principalmente depois que ele foi trabalhar com um amigo no SERASA, carregando caixa de verdura, como todos nós fizemos uma época ou outra da vida.
Num final de ano, quando a gente já era maior de idade, eu estava na casa da minha mãe para as festas. Minha mãe e o meu padrasto já não se falavam, mas ainda moravam na mesma casa. Eu peguei uma gripe forte com bastante tosse e estava deitada no sofá. O acesso de tosse foi ficando mais grave e minha mãe demorava para chegar do trabalho. Nunca vi Meu País tão assustado, ele queria chamar uma ambulância, queria me levar para o hospital imediatamente. Eu disse para Meu País que Deus tinha um plano para a vida dele, mas nem eu sabia se era verdade.
É possível que Meu País chorasse à noite quando pequeno, de saudades da mãe, mas eu nunca ouvi. Eu sei que ele perguntava muito por que. Era difícil não ficar com raiva e várias vezes eu revirei tudo que ele tinha e joguei no chão. Minha vida seria muito mais fácil se ele não existisse. Recentemente, eu fiz aulas de teatro e tinha um cara muito chato na minha turma que parecia Meu País, mas só fisicamente. Meu País parece alguns atores estranhos que eu vejo em filmes independentes. Quando a gente era pequeno, eu e meu irmão mais velho o chamávamos de Minha País, só pra ele ficar irritado. Todo mundo era corintiano, só ele palmeirense.
A última vez que eu vi Meu País chorando foi há quatro anos. O que você acha, ele me perguntou. Aos 20 anos, Meu País já tinha entradas e alguns cabelos brancos, um homem com potencialidade para ficar careca e morrer jovem. Não nos vimos por nove meses, mas depois nos encontramos ainda duas vezes antes de ele ir morar em Miami. Antes de ir, sei que ele marcou um café com o meu padrasto para contar da sua nova missão na Igreja. Ajudando a minha mãe a carregar as cadeiras de plástico, eu percebi o quanto era estranho Meu País chamar ela de tia todos esses anos. Fomos de Kombi até a casa comunitária onde ele estava morando com outras quinze pessoas. Ele falava um “Ai, Senhor Jesus” toda vez que achava necessário. Acho que ele estava entusiasmado de ter uma cama só para ele e usar sapatos sociais. Todas as suas roupas estavam limpas.
Naquela semana, eu ganhei dele um livro chamado “A grande esperança – viva com a certeza de que tudo vai terminar bem” que eu não li até hoje e não sei por que guardo no meio dos livros de culinária em cima da geladeira. Ainda em Miami, ele ficou noivo de uma menina muito simpática com quem eu conversei uma ou duas vezes. Logo eles se separaram.
Dois anos depois, quando ele pediu meu endereço para que alguns Irmãos pudessem me fazer uma visita num horário conveniente para mim, eu disfarcei e deixei para depois. Quando ele me pediu o endereço do meu irmão mais velho, eu disfarcei e deixei para depois. Nesse meio tempo, Meu País se mudou para o México da onde me manda mensagens de texto com versículos da bíblia, semanalmente.
Julia Raiz é poeta, ensaísta e tradutora, autora de “diário: a mulher e o cavalo” (Contravento, 2017), “p/vc” (7Letras, 2019) e “cidade menor” (Primata, 2021).