Rafael Gallo
“Life is a desire, not a meaning” (Charlie Chaplin)
Quantas noites atravessamos de ontem para hoje, Lia? Parecem infinitas. Mas a finitude é justamente a presença mais sensível aqui, a mais vasta. Já se alastrou por ossos e pulmões, tomou quase tudo.
Quase, Amor.
Justo agora, que o sol começa a raiar, eu me aproximo da última escuridão. E me vou para ela sozinha. Todos chegamos lá assim, a solidão máxima.
Você continua a dormir. Tão mal acomodada nessa poltrona, coitada. Não vou te acordar. Quando você abrir os olhos, já terá passado. Feito um sonho, que acabou. Melhor assim.
Somos o que passamos, Lia. Não o que resta nesse quarto de hospital: essa deterioração asséptica. Essa maldita contagem regressiva, na qual nunca se sabe onde recai o zero. Quero que você me guarde como sua menina, igual costuma me chamar. Me esqueça, por favor, nesta forma sem cabelos, de lábios opacos; esse aspecto de cadáver antecipado. Ou tardio, nem sei mais. Sou outra coisa, pertenço a outro tempo. E pertencer a outro tempo é, desde já, parte da morte.
Agh.
Dá para ver pela janela: o céu clareando e as estrelas se dissolvendo na luz. Tinha uma que estava bem ali e não está mais.
É estranho, mas posso sentir que a hora está próxima. Como se lâmpadas fossem se apagando dentro do meu corpo. Devagar, uma a uma. Em mim, vai ficar totalmente escuro daqui a pouco. O momento de dormir.
Dorme, Lia.
Você fica tão linda, de olhos fechados; só sua respiração em movimento. Vou imaginar que está me vendo aí dentro de seu sono, posso? Estaremos juntas, então. Eu sonho você me sonhando.
Quando as visitas começarem a chegar, para te dar os pêsames, você vai repetir várias vezes: “Eu estava sonhando com ela bem na hora”. Guarde esses sonhos, Amor. É o único consolo que me resta, a única eternidade pela qual anseio. Será essa uma forma de vida após a morte: ser sonhado por quem amamos?
É isso a minha alma, Lia?
Pois nenhuma outra me caberia melhor. Detesto a ideia de me transformar numa figura celestial; não quero habitar o éter, na forma de um anjo monástico, sereno. Tão oposto a mim, você sabe. Tampouco gostaria de ser um daqueles mortos similares demais aos vivos, que ainda seguem os passos do cotidiano, esforçando-se para proteger quem reza em seu nome. Tenho horror a assombrações desse tipo.
Agh.
Dói, Lia. Morrer dói.
E essas ideias de além-vida… Não, eu preciso viver você de verdade, deitar junto do seu corpo, ter o seu peso no meu. Enfiar a mão entre seus cabelos, aninhar-me no seu colo. Ouvir sua voz, sentir a vibração de seus lábios me alcançar, apegada às palavras que diz. Viver você. Cair em nossos beijos de corpo inteiro. Cair…
Dorme, Lia. Continue sonhando. Não vou te acordar para nos despedirmos. Porque você não vai poder me acordar também, logo, logo. Nunca mais vai poder me acordar, Amor.
Ah…
É tão horrível pensar nisso. Imaginar você abrindo os olhos, me vendo aqui, sem que eu já não veja nada mais. Deitada nesse leito, eu estarei aqui e não estarei aqui. Meu corpo sem mim. Podiam fazer a remoção antes de seu despertar. O lençol vazio te daria a notícia. Já teria passado.
Podiam deixar uma flor para você, no meu lugar. A flor te daria a notícia, a flor seria a notícia. A flor seria eu. Mais do que este corpo esvaziado, a flor seria eu.
Dorme, Lia. Dorme, que eu te amo.
Como será na sua vez? Velha, daqui a muitos anos? Ou também em breve, precoce? Perco tudo a partir de agora, nada mais acompanharei. Quantas coisas ainda acontecerão no mundo, ainda acontecerão na sua vida, sem que eu participe? É tão estranha a ideia de tudo, absolutamente tudo, acabar para alguém. Para mim. Me enlouquece pensar nisso.
Quem vai olhar para você, daqui por diante, quem vai te ver desse modo que só eu vejo? Ninguém. É o que serei: ninguém.
E você vai seguir. Tenho uma espécie de ódio por isso. Sei que é errado, mas odeio pensar na sua vida prosseguindo sem mim. As pessoas contentes por te ver se recuperando, pouco a pouco. A sua superação. E, no entanto…
Agh.
…No entanto, que alternativa temos? Você precisa viver, Lia. É perturbadora, sim, sua felicidade posterior a nós, é uma merda pensar nisso. Pior vislumbrar seus prazeres futuros do que ruminar os passados, suas entregas a outras amantes antes de me conhecer. Não se trata de mero ciúmes essa aversão a seu futuro; eu nem sei definir o que é tal ferida.
Mas se eu te contaminar de tristeza, uma tristeza incurável, parece-me ainda mais terrível. Detestaria que você se corroesse por minha causa. Não quero ser eu a sua metástase.
Eu… sua…
Eu…
…Prefiro que guarde um cantinho para mim dentro de você. Será o meu refúgio. Um lugar bem seguro, o mais secreto. Quando tiver outros amores – e eu sei que virão – elas se apaziguarão quanto a mim, a que se foi em definitivo. Uma pessoa morta não é ameaça a ninguém.
Uma pessoa morta. Eu.
Serei passado, o mais puramente passado. Você não destilará ressentimento contra mim, sei disso. Vamos nos separar em definitivo, sem nunca termos rompido. Então me conceda essa última cumplicidade:
Deixe suas futuras parceiras pensarem que tenho determinado espaço dentro de você, espaço que elas conhecem e respeitam. Mas mantenha-o um pouco maior do que elas imaginam. Reserve parte de seu íntimo para elas não tocarem, sequer saberem da existência. Algo só seu e meu, Lia. Nosso elo mais fundo. Me conceda essa última cumplicidade, vai.
Que horas são?
Horrível pensar na própria morte.
E esse respirador, às vezes, parece mais tirar meu ar do que fornecê-lo.
Queria poder te beijar. Uma última vez. A sua boca testamentada na minha. Queria fazer amor com você, de um jeito que não fosse possível antes desse limiar da vida. Fazer amor até me dissolver, encantada. Burlar a morte com o gozo.
Besteira. Que besteira, ninguém pode nada contra a morte.
Dorme, Lia.
Fecho meus olhos também. Falta tão pouco. Ouço sua respiração leve, a minha a se desfazer. Escuto, lá longe, as conversas das enfermeiras no corredor. Elas reclamarão dos ônibus ainda hoje e amanhã. E depois. Os ônibus continuarão passando, indiferentes. Um dia, deixarão de existir. Assim como as ruas, os prédios, as pontes; tudo submerso ou incendiado por radiação, algo do tipo. Algum apocalipse a nossa espécie vai providenciar para nós mesmos, mais cedo ou mais tarde.
Eu terei passado bem antes. Daqui a pouco.
Te imagino acordando logo depois, revoltada consigo mesma por ter perdido a chance de nos despedirmos. Esqueça. Isto aqui já não é mais nada. Só resto. Já estamos no depois das despedidas.
Tudo tão pouco, tão pequeno, Amor, perto da morte.
O momento decisivo foi antes, foi tudo que vivemos. Quando sua mão entrelaçou a minha pela primeira vez. Ali, eu soube o que começávamos. Ali, a minha passagem para outro mundo.
Dorme, Lia. Sonha comigo. Sonha com aqueles dias, para sempre.
Se quiser reter alguma imagem de mim desfalecida, lembre-se de todas as vezes em que me desmanchei nos seus braços, nua e alegre. Essa era eu, Lia, esses os meus estertores. Todo meu legado nos seus abraços úmidos, entre seus dedos a redesenharem meu corpo.
O mais é erro, Amor. Erro dos deuses, dos acasos, das minhas células a se replicarem desastrosas.
Agh.
Já não consigo nem chorar. Estou seca.
Como dói, Lia, se desfazer.
Você ficou aqui até o fim. Vai estar aqui ainda depois. Não sinta que… Por favor, não sinta. Eu… Shhh…
Dorme, já nasceu o dia.
Estranho você não acordar com a luz. Você… tão sensível a…
Nós duas… Cansadas demais… não é?
Eu nem…
…Nem sinto minhas pernas.
Estou afundando no seu sonho, Amor.
Ah…
Dorme, Lia…
Continue a sonhar comigo.
Para sempre.
Deixa eu prosseguir… nos seus sonhos.
Deixa eu ser para sempre.
Para sempre, Lia.
Dorme.
Rafael Gallo é escritor, autor de “Rebentar” (Record, 2015).