Monique Malcher
A dor no peito como uma companhia inevitável. Muito por aqui no meu pensar é sacramentado, tudo corrompido por pequenos filamentos traumáticos, certezas absurdas e teimosias que vivem aniversariando. Crio essa realidade que ignora o que se apresenta em carne, um jogo de sobrevivência, mas nunca assinei em canto algum que pertenço a um grupo. Nunca fiz planos para ser feliz, não costumo planejar coisas em que não acredito.
Milho, queijo, tomate, seis garrafas de água, pão, alface e castanhas.
Milho, queijo, tomate, seis garrafas de água, pão, alface e castanhas.
Milho, queijo, tomate, seis garrafas de água, pão, alface e castanhas.
A repetição silenciosa na mente, sempre me recuso a anotar o que preciso buscar, tenho medo do abandono do pensar. Feito ladainha dou para minha mente desafios, que se mostre em pé trabalhando a serviço de meus medos e esperanças. A fila contornando a maioria das gôndolas do supermercado, uma cobra de desejos para pratos diferentes de vidas diferentes. Ninguém ali sabe de minha angústia, digo baixinho para minha bamba presença: deixa tudo aqui e vamos para casa, se o coração explodir, você desmaiar… a fila acaba, e o pior, se aborrece.
Não, morrer posso permitir que meu corpo faça, mas aborrecer os outros? Jamais. Atrasar os jantares e as marmitas que serão preparadas neste domingo à noite? Jamais. Tenho a merda desse compromisso com o mundo de não atrapalhar.
Olha sua putinha, é a última vez que vou dizer tudo isso — encara a mulher que vive autorizada dentro de mim com raiva enquanto fala comigo dentro do carrinho de compras. Saiba usar seus calvários para abrir o oceano que ficou trancado nos últimos dez anos. Você tem mais do que vazio dentro, a tensão nos ombros que não passa se instalou porque faltou fechar porta. Sentimentos amordaçados e soltos, nunca existiu critério além do medo e do ódio. Na terra que nada romântico ou bonito poderia florescer, foi com esse cheiro inóspito que as inseguranças ganharam nosso corpo. Sei que você acreditou que era criatura capaz de esfaquear todas as emoções que a levassem para o castanho dos olhos de alguém que diria pensei em você ontem amorzinho. Não há espaço para piedade ou oração, porque deus morreu essa tarde como morrem os idosos que buscam um cochilo da tarde. Não preciso me importar com os mortos, mas para você ainda tem jeito.
Cada vez mais nervosa na fila e a mulher dando seu sermão.
Como não me reconhece? Sou a porra da vaca que esqueceu deusinho fora da geladeira e ele azedou, mas antes minha filha querida igual ao creio em deus pai todo poderoso retiro todos os seus pedidos — disse enquanto colocava a hóstia na minha língua. E dessa língua mulher nasceu a destruição do desejo incontestavelmente masculino. Mulher, esse apelido que o arcebispo que me beliscava na saída da missa me coroou. Uma mocinha virando mulher, já aguenta.
deus achou mesmo que poderia escolher por mim?
Estamos todos reunidos nesse supermercado e gostaria que pudessem escolher com muito cuidado as últimas palavras, talvez a porra de um pedido de desculpas ou uma historinha de trauma, coitado, ele não foi amado por isso queimou a cara da mulher com a merda de um ferro pelando. Dá uma chance pra ele papai do céu dos homens brancos? Penso em todos os amores que tive e que poderiam ser histórias felizes, mas tenho medo da felicidade.
Começo a socar o espelho imaginário dentro de minha cabeça
a fila andando lenta.
O espelho com quase dois metros encostado em um canto onde existe uma lista de supermercado escrita. Milho, queijo, tomate, seis garrafas de água, pão, alface e castanhas. O silêncio sente meu soco, que nasce desde o tremer da boca torta. Sei espancar com tudo que se articula. Todos os amores que me tiveram são vozes enquanto passo tremendo os itens no caixa. Não, eu não quero a porra do CPF na nota. Vou morrer aqui, a pele do rosto vai descolar. Flúor, cárie, placa. O resto da comida nos buracos dos dentes. O bruxismo vem com toda força brilhar. Subindo no elevador, rezando pra não encontrar ninguém, não sei encontrar mais nada, entende? Milho, queijo, tomate, seis garrafas de água, pão, alface e castanhas. Tudo em seu devido lugar. O amor é uma frescura, disseram, e eu acreditei sem nunca mais conseguir sair do que é casa, que também sou eu.
Monique Malcher é escritora e artista plástica, autora de “Flor de Gume” (Jandaíra, 2020).