Julia Codo
No final da história você será atropelada. Antes, em casa, você não está entendendo, apenas sente algo gelado no braço. Três segundos depois, vai olhar para o lado e ver a lagartixa rosa com a cabeça levantada. Você vai dar um grito, saltar, empurrá-la com a mão etc. Seu coração vai disparar, suas mãos vão tremer, e você vai se lembrar de todas as vezes em que se sentiu assim. O dia do assalto, a lâmpada do poste quebrada, o menino com a faca, a bolsa branca que você tinha ganhado da Sheila, os olhos dele amarelados. O dia da vertigem, a cabeça girando, o vazio, o desejo de pular, uma pedrinha quicando montanha abaixo. O dia do divórcio, os dois entrando juntos, mas afastados, fila, caneta, carimbo, cigarro. Em suma, essas coisas, você sabe, o de sempre. Você vai tomar um copo d´água e se certificar de que a lagartixa fugiu. Aos poucos, vai se acalmar e se lembrar de que precisa comprar pão; vai calçar uma sandália velha e sair. Sem sentir nada dessa vez, você vai pisar na faixa de pedestre, mas vai se esquecer de olhar para o semáforo, tudo isso porque vai uma bolha de sabão.
O carro é um Corolla vermelho, e você só se dará conta de que algo está acontecendo quando vir a cor vermelha, imensa, muito próxima. Você não sentirá dor, apenas uma sensação estranha, algo como um calor muito forte no corpo. De novo, você não está entendendo, mas sente seu corpo quase voando, e aquela é até uma sensação boa, que você sempre quis experimentar, embora não experiencie contato com vento ou céu. Isso da sua cabeça bater no chão não será exatamente agradável, mas será muito mais barulho que dor e, cerca de dois segundos depois, você já não estará consciente para ouvir o grito da mulher de sobretudo, a sirene da ambulância, os primeiros pingos da chuva, a fumaça que se levantará do asfalto e as outras vozes que dirão: “meu deus” e “que horror”.
Quando o resgate chegar, você estará sozinha deitada no chão. Toda a parte esquerda do seu corpo estará curva: o braço esquerdo levantado com o cotovelo dobrado e as mãos acima da cabeça, o joelho esquerdo apontando para o mesmo lado (o rosto também penderá para essa direção). A parte direita do seu corpo estará mais ou menos reta: o braço direito quase colado ao tórax, a perna direita também alinhada; o pé e as unhas, que você já deveria ter cortado, bem pouco inclinados. Seus olhos estarão fechados, sua expressão não será de desprazer e, se não fosse pelo sangue que começará a escorrer dos seus cabelos (e pelo fato de você se encontrar deitada em uma via pública), pareceria uma mulher dormindo.
Os transeuntes – uma palavra feia, você nunca gostou dela, não é mesmo? – não tocarão seu corpo, pois terão visto em algum programa televisivo que não se deve movimentar um ferido após um acidente para não provocar uma lesão mais grave. A primeira pessoa a chamar o resgate será o homem da banca de jornal que se lembrará de ter visto você por ali algumas vezes. Depois disso, mais dois vizinhos assustados com o barulho farão o mesmo. O Samu chegará rápido, e então a vida se prolongará por mais alguns instantes. Usarão um colar cervical, preocupados com a sua coluna, e também talas, bomba de oxigênio etc., como nos filmes. Seu casaco branco enroscará na maca e um socorrista ansioso cortará parte dele com uma tesoura. Você chegará ao hospital às 21h42.
Antes de sentir a lagartixa, você lavava os pratos; antes dos pratos, escrevia um poema e é por isso que estava distraída, olhando para a mancha bege em forma de coelho do azulejo em cima da pia. Você não tinha o hábito de escrever poemas e não era muito boa nisso – nem preciso dizer –, no entanto, precisava escrevê-lo. Já estava quase terminando, faltando apenas uma palavra. Era uma palavra perfeita, dessas que você sabe que existe, mas nunca vêm à mente quando precisa. No poema você escrevia sobre uma bolha de sabão – algo relacionado a seu método de preparo: detergente e amido de milho (já não me lembro) – e a palavra perdida estava relacionada a ela. Você tentou: vidro, vapor e espectro. Mas não.
Sim, no final desta história você será atropelada, mas isso não será a pior coisa que terá acontecido no dia e você sabe muito bem por quê.
Sobre estar morta: não se preocupe com isso, pois os fantasmas não existem mesmo, e nada acontece quando se deixa de viver. Você gostaria de ser um fantasma, eu sei. Seria divertido. Você entraria no quarto dos vivos durante a noite, em silêncio (eles não precisariam notar a sua presença) e os observaria deitados com pijamas que cheiram a amaciante de roupas ou a mofo, afundados em colchões de espuma exageradamente macios, as mãos quase em forma de concha, os dedos, assim como as pálpebras, movendo-se por vezes em espasmos indolores, os pés para fora das cobertas, apesar do frio, as bocas abertas, que em algumas ocasiões soltam palavras saídas de sonhos: caverna, Teresa, processo. Seria bom também poder ver os sonhos deles, pois você já não sonharia, e deve ser estranho não sonhar; embora, sendo um fantasma, tudo seria ficção, e sua visão seria turva e esfumada, como quando sonhamos e há sempre uma luz meio branca. Você não faria barulho, não os assombraria e deixaria que dormissem, apenas.
Naquela tarde, antes de voltar para casa, tentar escrever um poema e assustar-se com a lagartixa, você o tinha visto (você se perde pelas ruas do centro; entra num café desconhecido; senta-se e vê que ele lê um livro na mesa da frente; você já o conhece, e é estranho ele aparecer ali; percebe que ele te observa; pede um suco de laranja e um pão de queijo; vê que o rosto dele é carregado; irrita-se porque ele não para de olhar; levanta-se para pagar e vê que ele te segue; você e ele saem do café e conversam sobre o livro que ele está lendo e depois vagam pelas calçadas sujas em busca de cervejas; você entende que está sentindo aquilo de novo: isso é terrível).
Despontam, então, todos os incômodos corporais que já mencionei, iguais a quando se sente uma lagartixa gelada no braço, mas não só: também uma dor permanente na boca do estômago, algo desagradável parecido a enjoo, olhos secos abertos demais e uma pressão na cabeça que a mantém quieta quando não se deve estar quieta. Mas, assim sendo, sentada em uma cadeira de plástico, você sabe que ele olha para a linha curva do seu pescoço, depois para o ombro quase descoberto e também se detém alguns instantes em uma pinta no braço direito dele e em alguns pelos que se veem graças a dois botões abertos. Você pensa: o que há de mais bonito em um corpo é a sua superfície, pele, pelos, pintas (e começa com a letra P); embora não possamos nos esquecer das unhas (com U).
Sua coluna cervical chegará bem ao hospital, porém, o problema maior será o trauma craniano, e você terá que passar por cirurgia: paredes brancas, luvas brancas, luzes brancas, aventais, toucas, máscaras (tudo branco), tubo de oxigênio, desfibrilador. Resumidamente, os plantonistas tentarão salvá-la, mas, como já se sabe, você morrerá. Eles decidirão que você morreu após checarem os impulsos do seu cérebro em um eletroencefalograma. Alguém encontrará seus documentos e telefonará aos seus pais por volta das 23h30. Se estivesse viva, pensaria não passar de um pedaço de carne prestes a apodrecer, algo que os outros deveriam carregar como um pacote comprido e complicado, e em seguida depositar em algum lugar com espaço suficiente, um lugar que coubesse o que antes tinha sido você. Sua superfície e as palavras que começam com P já não passariam de partes de uma casca sem importância.
Retrospectiva dos seus últimos momentos de vida (de trás para frente): Morte. Cirurgia. Hospital. Resgate. Atropelamento. Bolha de sabão. Comprar pão. Lagartixa. Lavar os pratos. Mancha em forma de coelho. Poema. Letra P.
Morrer não é deixar a história sem conclusão, porque a própria morte conclui a história. No entanto, sei que no dia seguinte você gostaria de telefonar para o encanador que tinha ficado de consertar o vazamento da pia da cozinha, também deveria preparar uma aula sobre linguística cognitiva e responder a alguns e-mails. O melhor de se estar morta é não ter mais de se preocupar com isso, não é mesmo? Você também despertaria às nove e comeria um pedaço de pão com manteiga e um iogurte com frutas, leria as manchetes dos jornais online e tomaria banho. Talvez terminasse o poema, talvez recebesse uma mensagem do homem do café, talvez olhasse pela janela e visse os carros passando com pressa, talvez preparasse o líquido para fazer uma bolha de sabão.
Julia Codo é escritora, editora e tradutora, autora de “Você não vai dizer nada” (Nós, 2021).