Mateus Baldi
O ser humano nasce para trair.
— Como é que é?
O relacionamento monogâmico é um absurdo.
— Assim eu não escuto.
Ela está deitada na cama. Os olhos são duas bolas inclinadas sobre o travesseiro.
— Não ouvi o que você disse.
— Pizza, hoje é dia de pizza. Quer?
— Preciso dormir. Estou exausta.
— São oito da noite.
— Eu tive um dia cheio.
— É noite de pizza em dobro.
— Querido, eu preciso dormir.
Então é isso o que significa ser amante no século vinte e um. Ela vira para o lado e dorme. Ou finge que dorme. Fica em silêncio, os olhos enxergando um tom avermelhado que borra o interior das pálpebras. Vou até a janela e fecho a cortina. Lá embaixo está o cinema. Um carro de polícia estaciona e dois homens acabaram de sair. Abro a cortina e me posiciono na frente do poste de luz. Ela nem se mexe. Chamo baixinho que é pra ver se acorda. Nada.
Os policiais voltam com um pacote de balas. Dividem. Gargalham. Se eu me concentrar bem, por debaixo dos ruídos e das buzinas está a risada rouca. Frouxa.
Ela dorme.
Um inseto paira sob a luz. Seu interior parece uma gota de piche envolvida por uma jujuba reluzente. A viatura parte. Um casal entra abraçado. Puxo o celular e confiro os próximos filmes. Comédia romântica. Me interessa.
— Quer ir ao cinema?
Ela dorme. Profunda. Linda.
Compro o ingresso e visto uma roupa. Apago a luz. Estou na mesma sessão que o casal. Só nós e um par de velhos. O casal está na penúltima fileira. O filme é ruim. Olho para trás e fico vendo o cara passar a mão na menina. Seu ombro denuncia. Fui remador. Sei perceber essas coisas. Sei quando um ombro está a serviço do punho. A menina estremece. Não quero ser inconveniente, saio no meio – jogo a pipoca no lixo, atravesso a Nossa Senhora e subo. Ela ainda está dormindo. Peço uma pizza. Mastigo. Vou para o quarto. Viro um copo d’água, ela finalmente acorda.
— Eu dormi?
— Dormiu.
— Merda.
— Está tudo bem.
— Não. Droga. Me acorda da próxima vez. Não me deixa dormir assim de novo.
— Ok.
— Eu perdi alguma coisa?
— Não.
— Desculpa.
— Já disse que tá tudo bem.
— Eu não queria ter dormido, mas foi tão bom gozar contigo que…
— Shhh.
— Vem cá. Não, assim, não. Tira. Tira tudo. Isso. Agora sim.
Quando acaba de novo, ela se aninha no meu peito e pergunta, tímida:
— Você ainda quer ficar comigo?
— Quero.
— Mesmo eu tendo marido?
— Alguém tem que pagar as contas.
Ela ri.
— Você é um cínico. Acho que você tinha era que segurar na minha mão e gozar na minha boca.
Não respondo.
— Escuta – ela diz – Sabe por que você gosta de mim?
Não respondo.
— Porque somos a mesma pessoa.
— Isso explica não darmos certo juntos – digo. – Como um casal.
— Nunca daria.
— Jamais.
— Seria divertido, de qualquer forma.
— Seria. Mas o Rio de Janeiro não possui estrutura nem está preparado para um evento desse porte.
— O mundo ia explodir.
— Ia.
Ela sorri.
— Você me ama?
— Amo.
— Muito?
— Muito.
Mateus Baldi é escritor e jornalista, autor de “Formigas no paraíso” (Faria e Silva, 2022).