Gisela Rodriguez
Queria começar essa escrita de um jeito que não fosse escrita. Que fosse pensamento, aquela margem entre a mente e a realidade. Almas solitárias que sempre buscam no mundo explicação para estarem aqui, e somente a arte embala tal desconforto. Desculpem começar pelo começo, por aquele lugar deslocado que é, a vontade de deixar-se levar pelas palavras que se formam em rodopios, até nos apresentarem raciocínios, muitas vezes enigmáticos, mas que traduzem símbolos de vidas humanas. Mas essa loucura toda, insatisfação regada a qualquer coisa de egocentrismo, tem sua vantagem de não desistir nunca. Afinal, estamos falando de heroísmos quando nos colocamos nessa jornada. Mas juro de pé junto que tudo o que eu queria era ter aquela vontade de fazer uma revolução, sair por aí empunhando qualquer bandeira que traduzisse liberdade. Queria estar com as garotas fazendo arruaça na praça e deixando de lado tudo aquilo que é bacana de postar nas mídias, e apenas debruçar-me nas janelas e jogar panfletos à moda antiga, como a geração mimeógrafo fazia, e deixar ali um recado que basicamente é: faço poesia. Acho que aqui, eu deveria colocar notas de rodapé, mas cansei de ser uma pessoa de outra geração. E dando um tempo das pessoas que vivem no turbilhão de uma metrópole, e da cidade em si, com suas usinas nucleares, submarinos munidos de torpedos, drones captadores de informações, e principalmente, o medo. Medo de que tudo venha a desabar em qualquer estação de metrô, antes da porta do vagão abrir. E que a gente tenha de correr pelos túneis, aguardando os sinos de uma catedral que não existe, avisando o fim dos tempos, ou, a chegada do messias. Mas apesar da angústia, por conta da saída repentina de minha vida anterior, e sabendo que as coisas andam mal no mundo dos seres humanos, sendo eu mesma uma parte disso, assim como todas nós aqui, ainda tenho vontade de trabalhar do lado de lá. Se me imagino no centro do furacão, vejo que posso fazer melhor do que muita gente, aquilo que sei fazer. Talvez um pouco de coragem caia bem nesse momento, e quem sabe então eu ponha em prática meu plano. Um plano que consiste apenas em apertar uma tecla.
Aquela história de que no princípio era o verbo e o verbo estava com deus e o verbo era deus é bem confusa. Por que se o verbo estava no princípio com deus então não foi deus quem criou o verbo? Mas, de qualquer forma, nessa lenda cristã tudo começou com a palavra. Palavra, a segunda pessoa da Trindade, encarnada em Jesus Cristo. A sabedoria eterna. Eloquência. Imagina que trauma é usar a palavra errada num texto publicado, numa discussão, na apresentação de uma proposta de trabalho ou casamento. Somos mais verbais que corporais. Reprimimos o corpo, e exigimos mais da palavra até mesmo do que do pensamento. Se nosso corpo dançasse ao invés de nossa boca soltar frases numa situação qualquer será que não seríamos mais facilmente compreendidos? Por isso que eu tenho uma queda pelos símbolos. A representação sem a escrita. A ideia vai para um outro lugar e o argumento abre espaço para algo mais misterioso. Ao invés de explicar, ficamos absortos. Ali, nesse lugar da não-palavra, geramos qualquer coisa que vai além da razão e se mistura com o universo, sem alarde, como uma conexão.
Mas eu escrevo. E estou aqui agora para defender um livro. Olha eu novamente! nessa crise que só terá fim na própria dúvida. Veneno, veneno de Rimbaud. À mesa nos sentaremos como mulheres que somem Nesse espetáculo social, e tudo o que ele contém, Para dar início a nossa reunião, sem nenhum vestígio... De onde ela vem. Esse eco que depois vibrará nas sombras, Feitas como colchas de retalhos, em nosso preâmbulo, A invenção da nossa liberdade.
Gisela Rodriguez é escritora, poeta, atriz e diretora de teatro, autora de “Breve como tudo” (Bestiário, 2021).