Leandro Leal
Primeira faixa do lado B do LP Schubert Dip, “Unbelievable” era o maior sucesso da banda inglesa EMF. A sigla de batismo, dizia a mídia especializada à época, escondia uma piada dos integrantes: por baixo daquelas maiúsculas, declaravam-se Ecstasy Mother Fuckers, referência ao combustível da criatividade deles e de todos os músicos que compunham a cena, não por acaso nomeada “Madchester”. Naquele começo de década, Manchester havia se tornado uma cidade muito louca. A melancolia cultivada por Ian Curtis e Morrissey, se ainda presente, só podia ser encontrada em expedições por sítios arqueológicos de acesso restrito, os quartos dos jovens que ainda se declaravam herdeiros de uma timidez criminosamente comum. Mas eram minoria. No Hacienda e noutros clubes locais, embalados pelo som do Happy Mondays, do The Farm e do EMF, todos os outros fritavam. Todos filhos da puta do ecstasy.
Ele também era jovem. Ele também fritava. Nada a ver com ecstasy. Nada a ver com outros jovens. A única pessoa por perto tinha mais que o dobro da sua idade. Era pelo outro, roncando como os desenhos animados lhe ensinaram que se finge um ronco, que ele fritava. Sabendo que o outro não estava dormindo, ele não se dava ao luxo. Seus olhos permaneciam bem abertos, atentos ao mínimo movimento da silhueta estendida na cama ao lado. O medo mantinha seu cu apertado e colado na parede e todo o resto do seu corpo paralisado, mas ele tinha certeza de que, se necessário, agiria. Rezava por isso. Pai-nosso, ave-maria, salve-rainha, credo, repeat. Ele fritava. Como suas preces, a trilha sonora também estava no repeat, a mesma que fazia outros jovens, em outras circunstâncias, também fritar. You’re so unbelievable. O volume do pequeno CD player a poucos centímetros da sua cabeça estava baixo. Não acordaria ninguém, tampouco o deixaria dormir. Ele jamais dormiria de novo.
Da letra de “Unbelievable”, ele só entedia uma palavra. Muitos adjetivos poderiam definir o momento, mas a canção fazia o que lhe dava título suprimir todos os demais. Mais que nojenta, mais que aterrorizante, mais que desonesta, mais que covarde, a situação era inacreditável. Como ele, a dias de fazer 15, tinha virado objeto de desejo de um filho da puta dum viado de 30 e tantos? Um filho da puta dum viado que, até poucas horas, não era nem filho da puta nem viado: era um ídolo, um mentor, um exemplo, era quem ele queria ser quando crescesse. Agora, ele não achava nada daquilo. Não achava nem que viveria o suficiente para crescer. Aquela noite interminável prometia ser sua última.
Ele não fazia ideia do que o outro podia lhe causar. Cabaço, como o irmão lhe chamava e ele só se admitia em silêncio, não tinha malícia ou repertório para imaginar o que um homem adulto poderia fazer a uma criança, como a mãe lhe dizia e ele nunca havia se reconhecido até então. Tudo o que sabia de sexo se resumia a fitas pornô assistidas na casa de amigos e, principalmente, às velhas fotonovelas de sacanagem compradas pelo irmão num sebo, guardadas numa gaveta na qual ele não deveria mexer, mas que ele de vez em quando consultava em segredo, e que ele já havia, em segredo ainda maior, levado para a escola, em cujo banheiro, no recreio, havia mostrado para os colegas de classe, ganhando a maior moral com eles. Naquelas fotos preto & branco, mulheres magras ou gordas, com tetas pequenas ou grandes, mas bocetas sempre peludas, pareciam sentir muito prazer ao ser comidas de quatro ou ao receber porra na cara. Tinha até uma historinha de uma mina, a cara da Cicciolina, que chupava e tocava punheta para cinco caras ao mesmo tempo e que, no fim, todos gozavam na cara dela, de uma só vez. Ele já tinha tocado várias folheando aquelas páginas ou simplesmente pensando nelas. O que o deixava excitado naquela historinha era a mina, claro. Tinha homens pelados ali, um ao lado do outro, mas não era viadagem. Os caras só estavam ali daquele jeito, pelados e de pau duro, porque entre eles tinha a Cicciolina também pelada, que chupava e tocava punheta para eles. Se não fosse por essa mina, ainda que estivessem pelados, não estariam de pau duro. Seriam como os caras que tomam banho nos chuveiros do vestiário do clube, indiferentes à nudez dos outros. Não lhe passava pela cabeça de cabaço o que aqueles caras fariam entre eles se a mina fosse tirada de cena e se todos fossem viados. Já ouvira que os tais viados dão a bunda, porém não conseguia imaginar a cena. Para um homem dar a bunda tem que ter outro para comer, e que homem vai querer comer outro tendo tanta mulher a fim de dar? O questionamento ecoava entre os meninos da escola sempre que o tema viadagem surgia. Mas, se tinha tanta mulher assim a fim de dar, por que todos ali, apesar de jurarem o contrário, eram cabaços como ele? Se tinha tanta mulher assim a fim de dar, por que aquele moleque, primo do vizinho de um cara no primeiro colegial, tinha comido um outro moleque, lá no bairro dele? E esse tal moleque, o que tinha comido, não o que tinha dado, era viado? Quem comia também era viado ou só era viado quem dava? E se você deixasse um viado chupar o seu pau, você também passava a ser viado?
Mesmo que o outro não encostasse o dedo nele, ele sabia que morreria a qualquer momento. Seu coração nunca tinha disparado daquele jeito, nem no final das aulas de educação física, depois do imbecil do Álvaro ter feito a classe dar quinze voltas em torno da quadra. Nunca tendo ouvido falar de ataques cardíacos em adolescentes de 14 anos, apostava que seria o primeiro caso. As batidas do seu coração atropelavam as do EMF, faziam-se ouvir muito mais alto, mais do que qualquer coisa. Nova trilha sonora do seu terror, cobriam o ronco fingido do outro, davam-lhe a desculpa para cessar.
– Tá acordado? – quis saber o outro, em tom e palavras fraternais, em ambiente e hora que emulavam ocasiões em que o próprio irmão já lhe fizera aquela pergunta em busca de companhia para a insônia. – Eu sei que você tá. Fala comigo.
Ele não entendia como o outro tinha descoberto que ele estava acordado. Ele não fazia barulho nenhum. Teria sido justamente por isso, por ele não fingir roncar, como o outro antes tinha? Mas se ele, cabaço como era, havia se ligado de que o outra estava fingindo, se ele fingisse, o outro, que de cabaço nada tinha, também se ligaria. Será, então, que o outro tinha ouvido o coração dele bater? Não, seu cabaço, deixa de ser trouxa. Mais fácil o outro ter visto os olhos dele bem abertos, apavorados, atentos ao seu mínimo movimento. O quarto, afinal, não estava tão escuro. A luzinha do aparelho de som, irradiando claridade azul por boa parte do lugar, bem podia permitir ao outro ver-lhe os olhos provisoriamente celestes. Fechou-os bem apertado, como apertado já estava o outro olho, por onde nem pensamento passava. Sem poder fechar os ouvidos da mesma forma, sua vontade era a de tapá-los com as mãos, para não ouvir mais nada que o outro dissesse. Fizesse isso, porém, o outro saberia de fato o que já sabia por óbvio. Portanto, ouviu:
– Que pena que você não quis. Ia ser tão gostoso…
Era agora. O provável primeiro caso de menino de 14 anos – a apenas 4 dias dos 15 – morto vítima de ataque cardíaco estava para acontecer. Queria ter podido deixar uma carta de despedida aos pais e ao irmão. A este, confessaria ter sido o responsável pelas páginas das suas fotonovelas de sacanagem terem se grudado, lhe pediria desculpas e deixaria, em compensação, sua coleção de gibis, se é que eles ainda interessariam ao mais velho, às vésperas dos 18 e já tão metido a adulto. Aproveitaria a carta, também, para mandar o irmão tomar no meio do olho do cu, para prometer que viria do mundo dos mortos para lhe puxar o pé do responsável pela sua morte. Se ele estava agora naquela situação, afinal, era por inteira culpa dele. Tinha sido o irmão que, orgulhoso do amigo tão maduro e descolado, lhe apresentara o professor de inglês, para lhe fazer inveja, numas de eu tenho, você não tem. Não imaginava que o outro, mesmo por ser tão maduro e descolado, fosse dar atenção ao caçula, tão cabaço. Saberia o irmão da real natureza desse interesse? Teria a mínima noção de que o outro era um filho da puta dum viado? Pouco importava. Não saber não o faria inocente. Na carta, porém, ele tinha que admitir que a tal culpa não era inteira do irmão. Cabaço que era, deveria ter dado ouvidos à mãe quando ela alertara que não é normal um homem adulto, barbado, querer amizade com criança, abre teu olho, moleque. Desculpa, mãe. Vai se foder, irmão.
Mas seu coração não parou, e ele lamentou. A morte lhe parecia a única saída para aquela situação. De certa forma, no entanto, seu coração o tirou dali. Em trote acelerado, manteve galope crescente passando por cima até mesmo das palavras do outro – se disse alguma, ele não ouviu. Desembestado, o levou de volta no tempo. Passou por todos os livros, filmes e discos apresentados a ele pelo outro, por todas as conversas que tiveram, uma infinidade de portas abertas para dimensões até então inimagináveis. A cada uma que se abria, a criança se percebia menos criança, o cabaço, menos cabaço. Ele crescia e crescia nele a certeza de que era especial, mais inteligente que a média, quem sabe até superdotado. Não fosse, o outro, com tanta coisa interessante para fazer, com tantos amigos descolados, por acaso gastaria tanto tempo com ele? Claro que ele era especial. Muito mais que o irmão trouxa, de quem roubara o lugar na preferência do outro. Foi a ele, e não ao mais velho, a quem o outro tinha feito o convite, horas antes.
Na festinha na casa do outro, todos tinham uma taça de vinho ou um copo de cerveja na mão – até o irmão. A única exceção eram ele e sua garrafa de Keep Cooler, que o outro sempre repunha, mal acabava. Comprei só para você. Sim, ele era especial. A juventude dos irmãos os destacava dos demais convidados, todos há muito já formados na faculdade, onde alguns inclusive davam aula. A juventude dos irmãos era também o assunto escolhido pelos outros para começar a conversa. Dezesseis, quase dezessete, respondia, cuidando para não ser ouvido pelo irmão, que o desmentiria, fácil. Keep Cooler após Keep Cooler, aumentava sua confiança. Falava com desenvoltura sobre qualquer assunto, sem se abalar com todas as lacunas de conhecimento. Os outros se divertiam com ele, e isso, em vez de ofendê-lo ou intimidá-lo, o estimulava mais, aumentava sua confiança. Percebendo sua embriaguez, o irmão se aproximou dele, com uma intimação para irem embora, que já deu, tá bom, a mãe vai ficar preocupada.
– Pode ir, trouxa. Vou dormir aqui.
– Como assim, moleque? Que ideia é essa?
– O menino tá se divertindo – disse o outro, surgido do nada, a mão no ombro do mais velho – Deixa ele, cara…
– Não, cara, que é isso – retorquiu o irmão, em outro tom. – Ele já incomodou muito seus amigos, vai incomodar mais ainda se ficar pra dormir aqui.
– Incômodo nenhum – sorriu o outro. – Eu que convidei ele para dormir aqui.
– Ah, é? Então eu… eu durmo aqui também.
– Pra quê?
– Como assim, pra quê? Porque é meu irmão, porque é menor de…
– Eu sei que é seu irmão, que é menor. Você não confia em mim?
– Não é isso, é que…
– É que…?
– A essa hora não tem mais ônibus…
– Pega um táxi.
– Eu não tenho…
– Toma aqui – o outro lhe entregou um bolo de notas tirado da carteira. – Acho que isso dá.
O mais velho foi escoltado pelo outro, numa perfeita reprodução da cena tão comum nas baladas que começara a frequentar, onde seguranças usavam do expediente para se livrar de clientes indesejados. O mais velho não duvidava que, para tornar a réplica ainda mais fiel, caso ele resistisse, o outro lhe aplicaria uma chave de braço. Ninguém viria em seu socorro. Se nenhum dos convidados tinha reparado na sua expulsão, tampouco algum deles notaria a agressão. Na olhadela por cima do ombro, o mais velho viu a festa continuar com a mesma animação. Observou com tristeza um grupinho em torno do caçula, se divertindo às custas dele. Sem poder fazer nada, sentiu-se um bosta. Andava e continuava andando, como se as luzes dos táxis que passavam por ele não estivessem acesas. Não conseguia usar o dinheiro dado pelo outro, muito mais do que o preço da corrida até sua casa. As notas foram depositadas no banco da praça por onde passou, ao lado de um mendigo adormecido, uma tentativa de aliviar sua própria consciência, que ele se recusava a admitir como tal. Claro que não era. O que ele tinha feito estava além daquilo, além do seu choro, convertido em soluços. O que ele ia dizer quando chegasse em casa? Conseguiria para casa? Desculpa, mãe. Desculpa, irmão.
Não demorou para os outros convidados seguirem o rumo do mais velho. O outro não precisou de mais que uma desculpa furada para dar a festinha por encerrada. Houve protestos, mas nenhum mais veemente do que os do caçula, pô, tava tão legal, por que você mandou o pessoal embora, tem mais Keep Cooler?
– Acho que tem mais umas duas garrafas. Quer?
– Posso?
– Claro! Eu comprei pra você, lembra?
– Da hora! Mas antes eu preciso ir no…
O vômito que emergiu tinha o tom róseo de todo o Keep Cooler consumido aquela noite, era completamente líquido, a não ser pelos restos não digeridos de poucos amendoins.
– Cacete… Estraguei seu tapete…
– Não foi nada. Já precisava mandar lavar mesmo…
– Depois me fala quanto…
– Para com isso. Vai tomar um banho, vai.
– Não precisa. Nem me sujei…
– Anda, faz o que estou falando.
– Mas eu não tenho toalha e…
– Entra no banheiro que eu levo.
O caçula se virou na direção do banheiro, porém, antes do primeiro passo, veio o segundo jato de vômito, desta vez projetado adiante, atingindo uma parede e a tingindo de rosa. A ponto de cair, apoiando as costas na parede oposta, o menino estava desnorteado.
– Eita, moleque… Vem, eu te levo pro banheiro.
O caçula se apoiou no outro e, tropeçando nos próprios passos, foi guiado ao banheiro. Mal entraram, o outro lhe puxou a camiseta por cima da cabeça, forçando-o a esticar os braços. Desequilibrado, o caçula quase caiu, salvo pela privada fechada. O outro então se agachou para tirar seus tênis, o que fez sem pressa, desatando delicadamente os cadarços, dedicando às meias o mesmo cuidado de um neurocirurgião a um córtex. O carinho com que os dedos do outro roçavam os pelos das pernas do caçula, se notado, não encontrou objeções. Mas, quando fez menção de abrir o fecho adesivo da sua bermuda, o outro foi empurrado por ele, aparentando desperto de um transe. O outro não se abalou:
– Entra no chuveiro. Vou pegar toalha.
De volta ao banheiro, toalha e roupas limpas nos braços, o outro conteve-se para não puxar a cortina do box. Limitou-se, em vez disso, a anunciar:
– Vou deixar a toalha e as roupas aqui, em cima do vaso, tá?
A água gelada que lhe atingiu a cabeça completou o batismo do primeiro porre. Por um tempo que nem sóbrio saberia precisar, fez-se alvo do chuveiro aberto no máximo, como se a força do jorro pudesse desinfetá-lo, limpá-lo dos vestígios do vômito e de algo que ele nem sabia o que era. Mal fechou a torneira, se reconheceu cabaço, idiota, por que você não foi embora com o seu irmão? Abriu a cortina do box, não mais que uma fresta, por ela se viu sozinho no banheiro. Viu também as roupas e a toalha deixadas onde o outro prometera. Trancou a porta e só então tirou a bermuda e a cueca, com as quais havia entrado debaixo do chuveiro, e começou a se enxugar. Vestido com as roupas do outro, ouviu a música. You’re unbeliveable. Já fora do banheiro, tentou identificar de onde vinha o som e, sem pensar, foi seguindo até sua origem. Vinha de um quarto, cuja porta estava aberta. Parado na entrada, viu duas camas de solteiro e, entre elas, uma pequena estante com alguns livros e CDs, além de um mini 3 em 1, que tocava o sucesso do EMF. Quantas vezes ele não tinha ouvido aquele som antes, no walkman? A segunda do lado B de uma coletânea que o outro gravara para ele, recheada de bandas como Happy Mondays, Stone Roses, The Farm, Inspiral Carpets, Jesus Jones. Nunca tinha ouvido falar de nenhuma delas, vindas de uma cena chamada “Madchester”, mistura de mad com Manchester, sacou, ouve que você vai chapar, talvez não tanto quanto os caras que tocam, afinal que eu saiba você não usa ecstasy, sabe o que é ecstasy, né?
A única iluminação do quarto vinha de uma luminária no chão, em frente à estante. Ele olhava para sua luz amarelada quando ouviu a voz, impossivelmente próxima:
– Pensei que nunca fosse sair do chuveiro – disse o outro, a boca na orelha dele.
Ele se virou, assustado, e se deparou com o outro, travesseiros e lençóis nas mãos.
– Acho que você exagerou no Keep Cooler. Tá melhor? Busquei roupa de cama, como você pode ver.
– Por que o seu quarto tem duas camas? – soltou a primeira coisa que lhe ocorreu.
– Não é meu quarto. É o quarto de hóspedes. É onde fica a minha família, quando vem do interior – puxou o último erre, fazendo graça com a própria origem. – Mas hoje o quarto é seu.
– E você vai dormir no seu, né? – perguntou, entre aliviado e esperançoso.
– Não, vou ficar aqui com você, pra te fazer companhia, pra gente conversar.
O sangue dele foi a uma temperatura inferior à da água do chuveiro de minutos antes.
– Eu não vou dormir aqui. Decidi ir para casa.
– São 3h00 da manhã. Você acha que tem ônibus a essa hora?
– É… não tem, mas pego um…um táxi.
– Tá. Você tem dinheiro?
– Não, mas você me empresta, né?
– Emprestaria, claro… se não tivesse dado pro seu irmão tudo o que tinha.
Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder, irmão. Vai se foder.
– Então… vou ligar pro meu pai vir me buscar…
– Vai ligar uma hora dessas? Quer matar seus pais do coração? Deixa de ser bobo, cara. Dorme aí. Eu não mordo.
Enquanto o outro arrumava as camas, ele pensou. Em abrir a janela da sala e pular, torcer para ser aparado por um toldo ou por uma árvore abaixo ou quem sabe uma caçamba cheia de sacos de lixo macios, não, moleque, isso não é um gibi. Pensou em simplesmente correr, pegar o elevador e descer, não, o outro poderia me pegar enquanto eu ainda estivesse esperando o elevador. Pensou em correr tocar a campainha do vizinho, pedir para usar o telefone para chamar o pai, não, ele vai morrer do coração, ou a polícia ou o exército ou a Liga da Justiça ou os Vingadores, não, moleque, isso não é um gibi.
– Cama pronta. Deita. Você deve estar cansado.
A cama preparada pelo outro, lençol branco esticado, sem rugas, travesseiro fofo, era mais viável do que qualquer plano de fuga. Sim, ele estava cansado. Deixa de ser louco, moleque, o outro é adulto, mesmo se for viado, não vai querer nada com você, ele tem idade de ser seu pai, nunca faria alguma coisa com você, pirou, ele é seu amigo, você tá viajando, deve ser o álcool, porra, nunca mais bebo de novo, que sono do caramba. Deitado, não levou segundo para cair num sono profundo. Não levou segundo para, coração a galope, acordar novamente.
– O que você tá fazendo, porra?
O outro estava agachado ao lado dele, as mãos nos shorts, nos seus shorts, os shorts que havia lhe emprestado. Ele estava puxando os shorts, é isso o que ele estava fazendo. Estava tirando os shorts dele, porra.
– Desculpa, não queria te acordar.
– O que você ia fazer?
– Ia chupar o seu pau, talvez você nem acordasse.
– Não! Sai fora!
– Por que não? Você vai adorar – disse, continuando a puxar os shorts.
– Porque eu não quero, porque eu não gosto!
– Não gosta de quê? De ser chupado? Alguém já te chupou?
– Eu gosto de mulher, porra!
– Gosta? Você, por acaso, já ficou com alguma? Você nem sabe do que gosta, menino.
Como o menino que era, a resposta que veio dele foi choro. Desesperado, ruidoso.
– Cara, por favor, pelo amor de deus – implorou entre soluços.
– Tá, você não quer, não quer, tudo bem.
O outro se deitou na outra cama e apagou a luminária.
– Vou deixar o som rolando, tá? Você se importa?
A resposta dessa vez veio na voz do cantor: You’re unbelievable. A outra resposta foi o cu apertado, colado na parede e o silêncio, quietinho, bem quietinho, quem sabe uma hora esse filho da puta desse viado dorme e, aí sim, você foge. Mas o filho da puta do viado não dormiu, nem por um segundo, e sabia que ele também não tinha dormido e não estava dormindo.
– Que pena que você não quis. Ia ser tão gostoso…
Quando as batidas do coração desaceleraram um pouco, ele voltou a ouvir as do EMF. Tentou entender o que a música significava: não a letra, o fato dela ficar tocando tantas vezes seguidas. Por que o filho da puta do viado tinha deixado o CD rolando, em looping? Ele já tinha lido alguma matéria, talvez na Superinteressante, sobre hipnose, falando das técnicas, dos estímulos repetitivos e, cacete, será que esse filho da puta desse viado tá tentando? Seus pensamentos foram interrompidos por um som que não vinha do seu coração ou do 3 em 1. O filho da puta do viado tinha voltado a roncar. O ronco agora era genuíno, ele sabia, sonoro como o do pai. inconveniente, não representasse exatamente o oposto, a oportunidade esperada por ele desde que tinha se deitado. Aguardou mais uns minutos. O ronco se manteve, constante e imperturbável, a autorização de que precisava. Tinha que ser rápido, não podia fazer barulho nenhum. Mas ao levantar da cama as molas do colchão gritaram, mas a cada passo no piso de tacos um terremoto acontecia sob seus pés, mas ao encostar na maçaneta o prédio todo começou a desabar, mas o pequeno apocalipse não perturbou o sono do outro. O filho da puta do viado ainda está dormindo, o ronco o tranquilizou.
Ao fim do corredor, a sala de estar e a porta principal, atrás dela, um botão, o elevador, outro botão, o hall de entrada do prédio, a porta do hall, o caminho até a portaria, o porteiro e se o porteiro não deixar você sair, uma criança saindo à rua de madrugada, cadê seus pais, eles sabem que você vai sair, você é uma criança, não se esqueça. A poucos passos dele, outra porta aberta e uma possibilidade mais concreta: o quarto do filho da puta do viado, vazio e seguro. Pulou para dentro dele e se trancou, feliz por encontrar uma chave na fechadura. O coração tinha voltado a galopar. Embora já não se imaginasse a provável primeira vítima de um ataque fulminante aos 15 anos incompletos, tampouco se via capaz de pregar o olho. Sua salvação estava ao pé da cama, numa televisão de 14 polegadas. Passava um daqueles filmes velhos, tipo um faroeste, mas meio diferente, sabe, ele não fazia ideia de qual era. Depois do comercial, o filme recomeçou e o nome apareceu na parte de baixo da tela, em pequenas letras amarelas, que teve de apertar os olhos para ler: “Viva Zapata”. Nunca tinha ouvido falar, mas nunca se esqueceria. A ação do filme foi acalmando a do seu peito, olhos pesados, enfim fechados. Em certo momento, acordou num sobressalto, esse filho da puta desse viado tentou mesmo abrir a porta ou você sonhou? Abriu os olhos novamente e viu que a TV, ligada a noite toda, passava o Globo Rural.
Foi se acordar, e o coração retomar o galope. Você precisa sair daqui, moleque, não dá para ficar trancado aqui o dia inteiro, a semana inteira, o resto dos seus dias, se bem que aqui tem uma televisão, uma cama, dá para você se virar, e quando precisar usar o banheiro, como vai fazer para mijar ou cagar, imagina que nojo, você trancado nesse quarto, cercado de mijo e de bosta. A bexiga avisou, esse problema teria que ser resolvido o quanto antes. A coragem para sair do quarto veio da necessidade. No corredor, a caminho do banheiro, passou pelo quarto de hóspedes, porta fechada, o filho da puta do viado ainda estava dormindo? Botou o ouvido na porta e não escutou música ou ronco. Ouviu, porém, sons de televisão, de transmissão esportiva. Vinham da cozinha, por onde deveria passar para chegar ao banheiro.
– Final do vôlei, Brasil x Holanda, valendo medalha de ouro – comentou o outro, diante de um prato de cereais. – Senta aí, vamos assistir. Você gosta de sucrilhos?
Ele não respondeu. Foi ao banheiro, mijou demoradamente, procurou não pensar em nada, conseguiu. Descarga dada, mãos lavadas, antes de destrancar a porta, o medo de que o filho da puta do viado estivesse esperando por ele, pronto para atacar. Permanecia na mesa, vendo a final do vôlei, comendo sucrilhos.
– Vem logo, cara. O jogo tá sensacional.
Ele se sentou em frente ao outro, serviu-se de sucrilhos, encharcou-os com leite. O jogo na TV lhe dava a desculpa perfeita para não ter que dirigir o olhar ao outro.
– Que pena que você não quis. Ia ser tão gostoso…
Leandro Leal é escritor e redator publicitário, autor de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” (Edições Ideal, 2014) e “Olho Roxo” (Realejo Livros, 2021).