Henrique Rodrigues
Da série “histórias antigas adaptadas aos novos tempos”.
Seria desnecessário dizer que, quando essa história se passa, é um inegável tempo de pindaíba.
“Porque sem dificuldades não existe progresso”, é o que diz o palestrante de autoajuda diante da plateia de professores, naquele evento promovido pela secretaria de educação a fim de motivar os mestres a olharem com mais atenção a metade cheia do copo.
Naturalmente, o sindicato de professores descobre não só que o palestrante estava ganhando os tubos para repetir platitudes (ou seja, bobagens), como também que o malandro é cunhado do subsecretário. A concorrência para ministrar “uma sequência de atividades específicas de formação continuada” teria sido vencida com toda a lisura que cabe a um processo da esfera pública, segundo o político nas redes sociais.
Ainda que boa parte dos docentes não dê a mínima para as sessões de araque, tem sempre aquela porcentagem da galera que vai na onda. Entre elas o professor Hércules. Forte quase gordo, peludo e de óculos, tenta sempre melhorar de vida pelo caminho do conhecimento, de onde quer que ele venha. O professor gosta tanto que compra o livro do palestrante, intitulado “Passo a passo para ser fodaço”, autografa, tira selfie e sai determinado a dar uma guinada na própria vida.
É claro que o professor entende que não bastaria ler o livro e, num estalar de dedos, vai se tornar um sujeito bem-sucedido. Pega o décimo terceiro antecipado e paga uma sessão individual, à guisa de coaching, processo ao fim do qual fica estabelecido que o professor deve empreender, algo eficaz — ninguém sabe por que ainda tem tanto pobre no mundo, algo só explicado pela falta de iniciativa e preguiça. Segundo o guru, era preciso ativar o network, alcançar os achievements, make a plan, abraçar o hardwork, chafurdar de cabeça no mindfulness.
Após a consulta e a saraivada de anglicismos, o professor descobriu que precisaria executar 12 passos (na verdade eram 12 steps), convertido em atividades proativas acessíveis ao cidadão médio, conforme lista a seguir:
1) Professor numa escola pública – desafio já executado pelo professor, constituindo atividade que é uma tarefa hercúlea propriamente dita;
2) Professor em mais duas escolas particulares – é fato que o piso salarial para a categoria na rede oficial é uma merreca que precisa ser complementada, exigindo que o mestre corra de uma escola para outra, finalizando com o combo de 700 provas para correção em casa, todas escritas em miguxês e emoticons;
3) Entregador de comida de aplicativo – no caminho entre uma escola e outra não custa nada fazer umas entregas;
4) Motorista de aplicativo – e já que acontece um deslocamento em veículo próprio com investimento idem, não custa otimizar o recurso levando pessoas pelo caminho e faturar algum. Pé em Deus e fé na tábua;
5) Vendedor de Herbalife, Hinode e Avon – os catálogos podem ficar espalhados no banco do carro enquanto o passageiro descansa os olhos do celular e busca uma leitura que se reverta em benefícios – o encontro para entrega dos produtos pode ser nova corrida e taí a casadinha;
6) Vendedor de quentinhas – estamos no meio da jornada de sucesso e todos precisam parar para comer algo. Basta encher a mala com isopores de rango rápido, cujo cheiro vende o produto por si só durante as corridas, em atividade integrada e evoluída ao item 3;
7) Frete escolar – a gasolina já está paga, certo? Investimento feito? Então por que não agendar horários fixos para transportar a molecada para a escola onde se dá aula e ganhar mais um tanto?
8) Locutor de carro de som – o pacote do automóvel fica completo com a implementação de alguns decibéis a mais, que se convertem em cifrões a cada quilômetro rodado. As crianças adoram;
E para o fim de semana, pois descansar é para loosers:
9) Vendedor de miçangas – muitos desprezam aquele artesanato aprendido com os bichos-grilos nas faculdades, atividade que sustentou inúmeras chopadas marxistas e que ainda encontra adeptos entre a juventude questionadora do sistema;
10) Divulgador de empreendimentos imobiliários in loco – o que alguns chamam de bico pode ser entendido como um extra, um bônus, um plus. O anonimato oferecido pela roupa de palhaço afasta qualquer timidez e se concentrar no exercício de agitar a placa;
11) Atendente do McDonald´s – atividade profissional mais democrática que existe, sabemos que a lanchonete aceita pessoas apenas para meio expedientes e dias de maior movimento. Esse é o momento, que gostoso que é;
12) Youtuber & digital influencer – para lacrar, todas as atividades acima são registradas e transmitidas em canal próprio, revelando a versatilidade de um profissional antenado e transmidiático.
Moral: o passado foi clássico, mas o presente ainda é de grego.
Henrique Rodrigues é escritor, doutor em Literatura, autor de “Rua do Escritor” (Malê, 2020).