Jacques Fux
O diário de Sarah K.
Nascida em Lódz, Polônia, 1926
Filha de Lola L. e Henius
Sessões de Clara K.
Nascida em São Paulo, Brasil, 1949
Filha de Sarah K. e Yaacov
Notas de Lola K.
Nascida em Recife, Brasil, 1984
Filha de Clara K. e Adolfo
O diário de Sarah K. – 28 de janeiro de 1945
Os russos enfim chegaram a Auschwitz. Tarde demais. Vagamos aturdidas pelas vielas e dejetos de um lugar massacrado. Cadavéricas, silenciosas. Algumas de nós ainda respiram engasgadas. Olhares perdidos. Não somos mais capazes de nos espantar. Nem mesmo de chorar. Chora-se por subsistir algum sentimento de tristeza, saudade, dor, esperança, alegria, busca por alívio ou reparação.
E nada (tudo) jaz.
Seria necessário inventar palavras. Talvez um outro idioma. Uma nova forma de falar sobre o que e quem não mais existe. Palavras como as que escrevi quando jovem.
Eu não sou mais aquela menina. Ela, como tantas, está morta.
Sessões de Clara K. – I
— Doutora, eu ainda estou lá, eu sei. Sinto o meu cheiro pútrido perambulando pelos labirintos do Gueto de Lódz, vejo os corpos sem história e memória, e ouço os gritos das almas aflitas e retorcidas daqueles que pereceram. Ouço os meus próprios gritos e carrego, sustento, suporto o peso do nome da minha tia morta. Ela foi exterminada talvez em Chelmno, talvez em Auschwitz… uma tia que talvez nunca tenha existido de fato. A morte caminha o tempo todo ao meu lado, doutora.
— Mas eu nasci em 1949, e não vivi nada disso.
Notas de Lola K. – 1
Minha avó Sarah, assim como quase toda a geração de sobreviventes, passou parte da vida chorando em silêncio. Lágrimas inaudíveis deslizando até as comissuras da boca. Pranto jamais extinto por tempos nunca esquecidos.
Um dia, ao nos contar sua história, sublimou o poder da palavra e o valor de sorrir. Ela tentava se desatar do passado. À sua maneira. Foi uma senhora muito sábia.
2 de agosto de 1939
Ontem foi meu aniversário! Ganhei o mais cremoso bolo de chocolate das minhas irmãs, uma festa surpresa das amigas e este diário dos meus pais. Eles sabem que meu maior sonho é escrever! As palavras são projeções da alma, pequenas ternuras, pequenuras da vida e dos relampejos criativos e distraídos do acaso.
Mas a parte mais importante do dia foi que Dawid me deu parabéns. Ah, quase desmaiei! Aquelas covinhas que se insinuam quando seus lindos olhos se estreitam, aquele cheirinho gostível de banho confundido com os livros que ele sempre carrega, aqueles olhos veludos-velados pelos seus desajustosos óculos. Escalador e filósofo. Hummmm, como eu gostaria de conhecer o sabor de seus ósculos!
Tome tento, menina.
Claro que nem tive coragem de responder aos parabéns. Saí correndo e sem dar a menor atenção a ele. Como você é boba, Sarah. Que dia vai crescer?
Sessão II
— Eu não conheço minha mãe, doutora. Não sei quem é a dona dessas belas e poderosas palavras. Sempre foi estranha, muda e aleijada em gestos de carinho. Não sei como ela pode escrever coisas tão lindas sobre o amor, sobre a cidade, pássaros, cores, vidas, palavras… sobre as sensações mais íntimas e profundas, e ter sido tão fria e distante comigo. Ela foi tão tirânica e repreensiva. Doutora, ela nunca me contou de sua infância, de suas amigas, de seus amores, medos, desejos, sonhos. Será que minha mãe não percebe o mal que me fez?
— Será??
2
A minha geração – a das netas do Holocausto – aprendeu a duras penas a falar sobre o medo. Sim, carregamos a história – os sorrisos e também os bramidos – de cada um dos nossos antepassados. Heróis e fantasmas responsáveis pelo desmesurado mar de amor, zelo e carinho. E também por todo o oceano de preocupação, superproteção e desassossego.
Eu, minha mãe e minha avó transformamos o sofrimento em palavras. Legendamos, nomeamos, demos cor, vida, sentido, forma e razão para nossas aflições, nossos segredos e nossos tantos vazios.
Não sem muitos percalços.
9 de agosto de 1939
Como será beijar? Qual o sabor? Rutka me disse que dá um formigamento no corpo. Parece que a gente sente um tanto de formiguinhas – ou seriam abelhinhas? – caminhando por uma trilha sinuosa e circular ao longo do lábios, que vão se umedecendo feito mel, despertando espasmos involuntários e eriçando todos os pelos do corpo. Hummmm.
Mas eu só me entregaria assim ao Dawid Sierakowiak. Clichê? Claro! E ainda teria que ser um dia especial. Só nós dois, o mundo e o tempo deixados de lado, conversando sobre filosofia no Parque Helenów. E aquela luz do sol das quatro da tarde, que se apaga pouco a pouco, provocando uma saudade e uma certeza de que a paixão, assim como a vida, se renova e se revigora a cada instante. Como numa pinturasinfonia que desbota lentamente deixando a esperança de um recomeço.
Assim vai ser meu beijo.
Sessão III
— Eu me lembro, doutora, dos meus cinco anos. Falava tudo errado. Apesar de ser nascida no Brasil, tinha um sotaque estranho. E eu só usava as mesmas roupas. Minhas colegas de escola debochavam de mim. Eu chegava em casa triste, mas nunca contava para minha mãe o que tinha acontecido. Problemas nunca eram tratados em casa. Na verdade, não sabia muito bem o que se passava. Eu agia e falava como ela, e isso não me parecia errado. Lavava minhas mãos várias vezes por dia e arrumava meu quarto, assim como mamãe, compulsivamente. A roupa tinha que estar sempre limpa, passada, o cabelo penteado e as unhas cortadas. E nada podia estar fora do lugar. Duas vezes por dia ela verificava se a dispensa estava cheia, se não faltava comida, se tínhamos o bastante para comer. E comer muito.
— Anos depois, doutora, me dei conta dessas coisas e me revoltei. Escondi meu sotaque, parei de me limpar e de arrumar a casa o tempo todo. Comprei roupas, muitas roupas. Andava descabelada e maltrapilha. Queria enfrentar minha mãe e sua mania por controle, por organização e por rotina. Eu procurava pelo seu amor e pelo seu carinho, mãe, mas só recebia distância. Mãe, mãe, mãe, estou aqui, não me vê? Não me enxerga? Não me entende? Mãe!
— Clara?
— O que posso fazer, doutora?
— Perdoá-la, Clara. E começar a se perdoar.
3
No começo, minha mãe achava que sentir medo era o equivalente a estar viva. Ela, além das crises de pânico temendo pela própria ausência, sentia pavor de me perder. Eu tossia, ela se desesperava. Eu dormia, ela se deitava ao meu lado para se assegurar de que eu respirava. Eu tinha uma pequena febre, e passávamos horas no hospital acompanhadas pela sua angústia, seu suplício e sua imensa aflição. As netas do Holocausto viveram todas assim.
Ela se punia – e me punia – para termos certeza de que resistiríamos.
12 de agosto de 1939
Hoje foi o pior dia da minha vida. Tristível. Vi Rutka e Dawid trocando sorrisos no intervalo das aulas. Como pode fazer isso comigo? E o Dawid, a quem tanto prezo e estimo, que papelão. Um homem tem que ser fiel, íntegro e correto. E se está interessado em mim, tenho que ser a única.
Ontem ele me deu um poema de Ovídio, do livro A arte de amar, que está traduzindo. Claro, tive que fazer o papel de desinteressada, apesar do coração disparado. Que dor. Que raiva! Um homem como Dawid não pode ficar por aí, rindo e encostando em qualquer menina. E ainda mais com Rutka, que todos sabem que se gaba de suas conquistas. Que amiga é essa? Eu confiava tanto nela… e ela era a única a saber das minhas intenções com Dawid. Rutka está morta para mim.
Dawid, como imaginar uma vida sem você?
(Segredo-segredíssimo: Guardei com uma flor e com um carinho o seu presente-poema).
Sessão IV
— Eu me lembro de estar em seu quarto em um dos poucos momentos que ela tinha me deixado só. Tinha ido ao vizinho pegar um pouco de café. Ou era açúcar? Ela estava aflita, quase desesperada. Ficava assim nas raríssimas vezes em que faltava alguma coisa em casa. Aos oito anos não sabia nada sobre as origens da minha mãe. E tinha que fazer um dever para a escola: levar fotos para construir a árvore genealógica da nossa família. Abri uma das gavetas da mesa de perfumes dela. Estava quase vazia – ela não se apegava a nada. Encontrei uma foto rasgada. Minha mãe, com seus pais, e com outras três meninas bem parecidas. Henius, Lola, Mary, Rosa, Sarah e Clara, estava escrito em iídiche. Entrei em pânico. Um fantasma se acendeu em mim. Quem era aquela outra Clara, de vestido preto e branco, carregando livros de escola, com lindas covinhas e com um largo sorrindo? Abraçada de rosto colado com minha mãe? E quase idênticas?
— Minha mãe me surpreendeu com um grito. “Você está mexendo ‘nos’ minhas coisas? Quem te deu ‘a’ direito de fazer isso?” Fiquei desconcertada, doutora, com a imagem congelada de uma Clara espectral e distante. Permaneci imóvel enquanto fui levada para o meu castigo.
– E quem é você agora, Clara?
4
Eu e minha avó conversávamos na penumbra. Apenas uma vela iluminava as suas lágrimas. Com um sotaque forte – um sopro de alma –, ela me contava de quando era jovem, e vivia em terras, transes e tempos cândidos e poéticos. Entre sorrisos, abraços e brincadeiras inocentes. Antes do Campo e do Gueto.
Ela me contava de suas irmãs, sua mãe e de suas tias. Das amigas e professoras e da sua Lódz. Queria ser poeta, por isso narrava a beleza dos girassóis, o suor perfumado das crianças a correr pela casa, o voo e o canto dos pássaros assegurando a existência de um deus. Ela gaguejava – e quase se afogava – ao se lembrar das pessoas próximas com quem conviveu e que amou. Pessoas tão próximas, íntimas e queridas que minha mãe e eu jamais conhecemos.
Ela engasgava ao se lembrar de Dawid.
13 de agosto de 1939
Hoje Dawid se aproximou de mim como se nada tivesse acontecido. Veio me mostrar um de seus últimos escritos. Que cara de pau! Fiz questão de desprezá-lo e tratei logo de conversar com o Marek. Marek é um menino sem graça. As meninas do colégio até acham ele charmoso. Eu não. Mas fiz questão de trocar sorrisos com ele.
Dawid ficou um pouco perdido. Coitado. Deixou cair os livros, tropeçou na escada e machucou o joelho. Quase ofereci ajuda, mas me controlei. Sim, Sarah, uma mulher tem que ser dura e decidida. Convicta de suas atitudes e decisões. Dawid vai ter que aprender a me dar mais valor.
Mas a verdade, diário, é que não sei até quando vou conseguir me privar das lindalegrias de estar ao lado de Dawid…
Rutka me procurou hoje. Fingi que nem notei.
Sessão V
— Eu me lembro de chegar em casa chorando. Estava assustada e envergonhada, e não sabia direito o que estava acontecendo comigo pois sangrava sem explicação. Fui correndo ao quarto de minha mãe. Ela se assustou com meu grito. Depois me levou para o chuveiro e me lavou. As duas choravam juntas. Ela tentava me falar alguma coisa, mas suas palavras não saíam. Parecia engasgada. E me lavava com força. Começou a esfregar o próprio braço. Eu encarava aquela tatuagem de números verdes desbotados, que por mais que minha mãe a arranhasse e a violentasse, não se apagava.
— Um pouco mais calmas, minha mãe conseguiu me dizer que me tornara “crescido”, e que as perdas iriam começar. Falou e saiu de casa sem explicações. Chorei sozinha. Nunca mais falamos sobre o assunto.
— E você ainda enxerga o seu sangue misturado com a tatuagem de sua mãe, Clara?
5
Minha mãe sempre se queixava da frieza e do silêncio de minha avó. Elas nunca conversaram sobre os sentimentos, os acidentes e as desilusões da vida. Nunca falaram sobre o amor, sobre as descobertas e mudanças do corpo, sobre os encantos e encontros. Sangue – mesmo sendo a seiva que promete a vida – era encarado com pavor. Resgate contínuo de um pesadelo corrente.
Eu também sempre me queixava da frieza de minha mãe. Das suas loucuras e das nossas privações. Ela vivia se metendo na minha vida, interferindo na escola, e me protegendo de mim e das minhas amigas. A gente vivia se mudando. Nasci e vivi um tempo em Recife. Tempo suficiente para ser conhecida como “a menina nó cego” ou a “tabacuda”. Eu me sentia e era vista como estranha. Não sabia das minhas origens, mas as marcas deixadas pela minha mãe não me permitiam viver sem vestígios.
Três gerações distantes, atadas em silêncios.
Jacques Fux é escritor, pesquisador, professor e tradutor, autor de “Nobel” (José Olympio, 2018).