André de Leones
Ligou a seta, abaixou o volume do som (não muito) (o suficiente para se comunicar com o frentista sem ter de berrar), diminuiu a velocidade, adentrou o posto e parou junto a uma das bombas. Um rapaz esquálido, cujo bigode adolescente mais parecia uma mancha de graxa, estendeu a mão e pegou a chave depois que ela disse: completa aí, por favor.
Enquanto o frentista trabalhava, Garcia saiu do carro sem dizer palavra e caminhou apressado até a lanchonete. Certa vez, fizeram um serviço em um posto de gasolina bem parecido. Quando foi mesmo? Uns três anos antes. Oitenta? Sim, em plena quaresma, perto de Frutal. Não foi algo exatamente planejado. Uma caçada. O sujeito em fuga havia semanas. Um major da PM caído em desgraça. Um merdinha corrupto como tantos outros; isso não era o problema, claro, não por si só, o rolo envolvendo dois ou três vereadores e outros oficiais da polícia, o idiota armou um esquema paralelo, um desvio dentro do desvio, alguém descobriu e foi morto, a coisa estourou e o major teve de sumir. Ela nunca teve paciência para os detalhes. Ela nunca quis saber. Depois de muita enrolação, uns sopapos distribuídos aqui e ali, apertos, sovas, subornos, favores cobrados, idas e vindas, alguém mencionou uma chácara em Minas Gerais, quase na divisa com São Paulo. Esgotadas as outras opções, sem mais pistas a seguir, foram até lá. Horas e horas na estrada. O carro? Uma Variant 73, marrom. A ideia era se hospedar na cidade e investigar um pouco, dar uma olhada nas redondezas, descobrir se o sujeito estava mesmo na tal chácara, assuntar a rotina que levava, elaborar um plano, decidir a melhor forma de liquidar a fatura, em suma, arquitetar a brincadeira com toda a calma possível. Mas, por acaso, quando chegavam à cidade, deram com o major em um posto de gasolina. (Garcia e sua abençoada mania de manter o tanque sempre cheio.) Três e pouco da manhã. Aquela foi uma coincidência absurda, o tipo de coisa que a faria desistir de um filme e desligar a televisão ou fechar o livro, como assim?, vai se foder, isso não acontece, caralho. Mas aconteceu. Passaram bem devagar junto à bomba. Era ele, sim. Bêbado, dançando catira ao lado do carro, porta aberta, uma fulana no banco do passageiro, ambos gargalhando enquanto o frentista abastecia, sonolento. Ela batia palmas e balançava a cabeça de um jeito infantil, como se cantasse parabéns, maquiagem borrada, os peitos quase saltando do decote. Contornaram as bombas e pararam alguns metros atrás. Uma boa olhada ao redor. O posto vazio, exceto por quatro caminhões estacionados a uma certa distância, os motoristas dormindo ou traçando putas nas boleias.
Vai ser aqui mesmo, disse Garcia.
Tem certeza?, ela perguntou. Ainda meio neófita na ocasião, mas, pensando agora, faria a mesma pergunta e talvez outras: por que não seguir o sujeito? Por que não matá-lo mais adiante? Talvez em uma estrada vicinal ou no meio do nada?
Após todas aquelas semanas no encalço do filho da puta, após dirigir por tantas horas, de saco cheio daquela história, Garcia não quis nem saber: tenho, sim, deixa comigo.
Desceram ao mesmo tempo. Ela contornou o carro e se sentou ao volante, pronta, enquanto ele avançava, revólver em punho. O frentista terminara de abastecer e encaixava a mangueira na bomba, bocejando. Ainda fora do carro, o fulano tinha parado de dançar e dizia alguma besteira para a mulher, que ria bem alto. Um baque, o frentista caindo no chão. Depois, os disparos. A mulher se encolheu toda, escondendo a cabeça. Não gritou, não tentou fugir. Por um segundo, Isabel teve a impressão de que Garcia também a mataria, mas, depois de se abaixar e dar uma boa olhada na infeliz, soltou uma risadinha e deu meia-volta, balançando a cabeça. Noite feia, aquela. Céu fechado, chuva forte a caminho. Ventania. O frentista nem viu o que aconteceu, a coronhada na cabeça; melhor do que levar um tiro, não? O sujeito viu: boca escancarada, olhos arregalados, aquele susto, a ciência da própria morte segundos antes dela ocorrer, abriria o maior berreiro e sujaria as calças se tivesse tempo. Dois tiros no peito, um no meio da cara, o último na testa quando o corpo já estava no chão.
Se tem um troço que eu odeio é catira, disse Garcia ao se acomodar no banco do passageiro.
Deram o fora. Nem viram Frutal. Retorno, os rumos de casa.
Por que não matou a mulher?, perguntou alguns quilômetros depois.
Ele encolheu os ombros.
Sério, por que não?
Suspirou antes de responder: não mato puta.
Ela era puta?
Era.
Como é que cê sabe?
Sabendo, uai.
Como assim, sabendo?
Quer voltar lá pra gente perguntar?
Não.
Não?
Melhor não.
Era puta, vai por mim.
E o senhor não mata puta.
Não, já falei, não mato puta.
Não sabia dessa.
Agora sabe.
E por que não mata?
Não mato e pronto.
Ela riu.
Tava toda encolhida lá dentro do carro, escondendo a cabeça.
Eu vi, e não gritou nem nada.
Não, não gritou, só se encolheu, deve tá encolhida até agora.
E o senhor não mata puta.
Não, disgrama, não mato puta.
Tá bom, então.
E a senhorita não devia matar também, se tiver a oportunidade.
Por quê?
Sei lá, só acho errado.
Só por isso?
Só por isso.
Errado?
Errado.
Tá bom, então. Nada de matar puta.
Exatamente.
Abandonaram a Variant perto de Campo Florido. O retorno em ônibus separados, ele para Goiânia e ela para Brasília. Aquele foi um serviço longo e trabalhoso e exaustivo, mas limpo, pensou olhando na direção da lanchonete: Garcia voltava com um maço de Continental e um copo descartável cheio de café. Não mata puta. E se não for uma puta? Não é tão difícil assim se enganar. Sem falar que o termo puta é muito mal utilizado, vítima das piores generalizações. Por exemplo: mulher é tudo puta, dizem alguns cavalheiros. Bom, ela pensou, vendo-o abrir a porta do carro e se reacomodar, se for mesmo caso, eu pelo menos sou uma puta que anda armada e sabe atirar.
Toma.
Opa. Obrigada.
Não joga o copo fora depois.
Tá bom.
De volta à estrada, ela bebeu o café e passou o copo vazio para ele, que já havia acendido o primeiro cigarro. O toca-fitas seguia ligado, mas Isabel abaixou ainda mais o volume antes de deixar o posto. Um certo cansaço. Alguma apreensão. Sequer prestava atenção ou se deixava levar pela música, agora um zumbido baixo, quase soterrado pelo ruído do motor. Pouco antes do trevo de Anápolis, a mão que segurava o copo-cinzeiro apontou para a direita; ela aquiesceu. Distrito Agroindustrial. Mais à frente, outro sinal: esquerda. Estrada de terra. Ela girou a manivela, subindo o vidro. Ele apagou o cigarro, o segundo, meteu o copo com as cinzas em um saco de papel, atirou o lixo pela janela e tratou de subir o vidro o mais rápido que pôde. Cascalho. Poeira. Queimadas ao longe. Fogo, fumaça. Vento. Animais cruzando a estrada. Um povoado, a rua principal quase deserta. Mais estrada, mais poeira. Zumbis?
(Até eu mandar parar.)
E, então, agora, ele desliga o toca-fitas com o indicador da mão esquerda.
Quase lá.
Onde?
Tem uma venda mais adiante.
Uma venda?
Uma birosca. Cê vai ver.
Ela concorda com a cabeça. Sim, logo à frente. Meio quilômetro. Uma pequena bifurcação, a espelunca instalada bem ali. Boteco, secos e molhados, sinuca. Pintura gasta. Não há letreiro. Um velho sentado numa cadeira do lado de fora, a alguns metros da estrada.
Estaciona na frente, não. Embica aqui desse lado, ó.
Mais ao fundo, a extremidade traseira de uma Rural Willys. Será do dono do lugar? Olha ao redor. Nenhum outro carro. As queimadas um pouco mais distantes agora. O fogo caminha com as próprias pernas. Quem disse isso? Quando? Não se lembra. A frase simplesmente veio à cabeça. Agora, do nada. Espera. Foi Gordon? Não, porra. Não. Eu mesma. Na beira do rio. Aquele feriado. Procissão. Minhas previsões agrárias. Fogaréu. Gordon não está aqui. Gordon está viajando. Ficou de voltar em. Quando mesmo? Julho? Nós também. Eu. Viajando. Na estrada. Pelo retrovisor, vê a poeira que levantaram. Olha para o lado. Ele pegou o revólver no porta-luvas e checa o tambor. A beleza da ponta oca. O serviço será aqui? Ou perto daqui? A gente veio aqui pra comer ou pra matar? Ele disse: perto de Anápolis. Talvez ambos, se for o caso. Comer, matar. Não tô com fome, ela pensa ao se virar e alcançar a mochila no banco traseiro. Perto ou longe, aqui ou não, é melhor não perguntar. Abre, pega a SIG P210, checa. SIG and Sauer, costuma brincar com Gordon, porque ele sempre diz Smith & Wesson daquele jeito meio afetado. Melhor não pensar nessas coisas agora. Melhor não se distrair. Melhor não dizer nada. Guarda a pistola na mochila. Ele dirá. Fecha o zíper. Se for o caso. Olha para a frente. Quando for o caso. Rural Willys. Até vossa excelência mandar parar. Olha para o lado. E aqui estamos. Ele olha para a frente. Onde mesmo? Ele leva a mão à porta. Perto de Anápolis. Destrava, abre. Em que prega inflamada dos cus de Goiás? Desce do carro resmungando algo. Não importa. Bate a porta com força. Siga-me, e eu farei de você pescadora de. O fogo caminha com as próprias pernas. Sim, Gordon, caminha. E eu também.
André de Leones é escritor e tradutor, autor de Eufrates (José Olympio, 2018).