Cristina Judar
Soprava fino pelos lábios, como se emitisse uma sinfonia de oito mil rompantes. E suava, em mangas de camisa de suéter. Permanecia no baixio esquerdo de seu rio. Seu oráculo preferido eram as rotas desenhadas pelos pés que estavam debaixo da mesa na qual se sentara minutos antes de subir ao palco. Naquele território escurecido de tecidos descortinados, havia esquinas, resíduos, bitucas, desencontros, transas do início ao fim, furacões: o underworld daquele piano-bar.
Como no dia em que a moça de vestido de cetim e corte de cabelo extremamente Loulou (seja lá o que isso quer dizer, mas que poderia ser facilmente interpretado como uma das versões do clássico Chanel) rasgou o ambiente, de lado a lado. Ela, um feixe de fúria, quebrou uma taça de Cosmopolitan e a atirou no rosto de um certo camarada ̶ o piano emitia uma trilha sonora comovente. O gesto doeu como o desaguar do sangue rasteiro sobre a camisa do rapaz, e os caquinhos de vidro, caso a cena ocorresse em câmera lenta, executariam uma espécie de dança aérea, comporiam um mosaico em suspensão, um móbile das realezas malemolentes e translúcidas.
O rosto da moça de cabelos Loulou refletiu-se, diminuto, em um dos caquinhos: das belezas e mistérios da vida que o mundo jamais se dá conta. E que os homens, conscientes dessa verdade, usam como motivo para se jogarem ainda mais fundo em piscinas de pólvora pasteurizada. Mas Jonas já sabia de tudo, antes mesmo de tudo acontecer. Sabia o que os unira e o que os separara, e a razão do sangue doce ter se livrado do oculto das artérias, das vielas por debaixo das mesas, das notas em movimentação.
Sua capacidade de prever acontecimentos chegava a assustá-lo. Isso sem contar a crença de poder gerar fatos e coisas de acordo com a sua vontade. Tudo começou em um amanhecer de anos atrás, quando ele constituiu uma faixa alaranjada de nuvem e luz no firmamento, a faixa cruzava o céu de leste a oeste, ela podia ser vista entre as persianas. Foi em questão de segundos, apenas porque Jonas imaginou serem essa faixa e essa tonalidade ideais para dar nova vida ao seu céu particular, que, até instantes, estava nu. Por essa razão, sua mãe, única testemunha ocular do fenômeno, costumava chamá-lo de “garoto da aurora” ou “febre das manhãs”.Aconteceu que, naquela noite no piano-bar, o seu coração estacionou de tão acelerado ̶ talvez tudo não passasse de um estímulo regido pelas baquetas percutidas, a anunciarem que em instantes subiria ao palco a cantora com cristais na voz e o carisma de um tigre da Guiné.
Jonas havia pressentido que algo especial e indescritível aconteceria ali, com aquela cantora, exatamente. Agarrou o trompete, era chegada a hora de ditar ao público os resultados de suas visões. Soprou fino pelos lábios aos olhos sugadores de uma plateia descrente.
Cristina Judar é escritora, autora de “Elas marchavam sob o sol” (2021).