Bruno Bucis
Há exatamente 156 pessoas que me desejam nesta cidade. Na verdade, são mais. Há ao menos outros 99 rostos que teria que pagar o aplicativo para saber quais são.
Eu sou totalmente contra os aplicativos de relacionamento. São como vitrines, menus de restaurantes, sex curriculums. São uma extravagância que as minhas finanças de estudante em intercâmbio não podem tolerar.
“Descubra quem se interessou por você com nosso plano gold.”
Golden shower, fisting, relacionamento sério, pai dos meus filhos… Tem um pouco de tudo entre as 255 pessoas dessa cidade que me deram corações.
Elas estão ocultas nas máscaras faciais do metrô, estão perdidas nos reservados dos banheiros dos shoppings ou estão caminhando como zumbis pelas praças de concreto, arrastadas por seus cachorros que correm do sol inclemente.
São como as pombas: por todos os lados, sem rumo. Todos iguais, todos indivíduos.
Fantasmas… Sim, eu já sei que ninguém deveria escutar Sarah Brightman no verão, são coisas que não combinam, mas de todos os modos aí está ela vocalizando sua dor nos meus ouvidos, atingindo o agudo da sua perturbação soprana ao se descobrir um brinquedo nas mãos de um fantasma.
Melhor seria desligar a música e ler um livro. Ou caminhar até meu apartamento e usar o dinheiro do ônibus para uma casquinha.
Não, é melhor esperar. Sou muito bom esperando.
Sorrio e me vejo nos reflexos dos carros, os olhos cristalizados de metanfetamina.
Eu espero como esperam as bonecas de porcelana na vitrine do antiquário. Espero com minha camisa laranja e rosa que denuncia que sou um turista, que grita como os doces expostos na bomboniere da esquina que todos me vejam, que alguém me escolha.
Vou resistir à tentação de terminar essa frase com “que alguém me pegue”.
Há que fazer jogo duro, resistir a meter uma piada em tudo, terminar sempre com um duplo sentido, com uma conotação sexual.
“¿Qué has dicho? No entendí.”
Eles nunca entendem.
Revoam as pombas, correndo de um cachorro que se soltou da coleira.
Em disparada pela ladeira, 255 flechas atiradas contra mim.
Todos eles me desejam ou pelo menos me desejaram nos três segundos em que o azul de suas telas se iluminou com minhas fotos, meu nome e a distância que nos separa. Uma, duas… Quantos deles tiveram paciência de chegar à quinta foto antes de darem seu veredito?
Em algum momento durante estes três segundos, em um instante do tempo que se estica como um elástico, 255 pessoas me viram chegar com duas latas de cerveja, me quiseram beijando seus pescoços, me convidaram para andar de bicicleta, discutiram comigo por alguma estupidez e “flashearon” nós dois publicando fotos juntos no Instagram, cercados de uma decoração brega de Dia dos Namorados.
São três segundos para imaginar uma história, deixar nascer um universo, cristalizá-lo e avaliar sua firmeza como um joalheiro examina um diamante. Aos 255, essa pedra pareceu preciosa, condensadora de contos de fadas interessantes, divertidos e bonitos.
Me deram seus corações verdes e não os seus X vermelhos.
Deslize para a direita, de onde vem dois ônibus nº 56 cheios de gente que me deseja.
Two streetcars named desire.
O vapor dos escapamentos, o giro dos volantes, línguas e pernas. Dois haréns que se movem e eu, um Deus, o centro das atenções… Mas são fantasmas. Não tem corpo. Não falam. Não beijam. Sonham e nada mais.
Com que sonharam eles? O que viram nas minhas fotos?
O estrangeiro exótico, o garoto com um chapéu divertido, um homem com um sorriso de tubarão. Eu sou tudo e sou nada disso ao mesmo tempo e há tempos…
São 156. Trabalhemos com os que eu pude ver o rosto, só com aqueles para os quais eu também já dei meu coração verde, apodrecido, solitário e cheio de limo como uma rocha perdida nas margens do rio Piedra.
Há 156 pessoas diferentes que se interessaram por mim aqui dentro das muralhas do microcentro de Buenos Aires. Em um raio de cinco quilômetros, eles me olham pelas janelas dos arranha-céus, nas esquinas escuras e nas floriculturas que varam a madrugada vendendo cocaína. Eu conheço seus rostos. Eu escutei seus “holas” e desperdicei meus “buenos días” com eles. Já os vi, mas não poderia reconhecê-los.
Essas pombas que voltaram a se agrupar perto da estátua do escritor… São as mesmas de antes?
Aí vem eles, se alinham na parede da delegacia com linhas que revelam suas alturas. Bege sobre cinza. Descamisados e em expressão neutra, não me veem por trás do espelho. “Você reconhece quem te fez isso?”. Sangrando sem coração, tento enxergar direito. Eu só vi o rosto dele por três segundos. Foi tudo imaginação nesse universo, senhor policial, não sei, mas sem dúvida é o segundo da esquerda para a direita, o que está mais perto da loja de doces, esperando o ônibus. Tenho quase certeza de que já falei com ele uma vez.
Ele também me reconhece da cena do crime.
“¿Qué onda?”
Eu não sabia o que eu estava fazendo quando me inscrevi nesse aplicativo. Para mim era tudo uma grande piada, mas esse projeto acabou tomando mais tempo meu do que qualquer dos meus compromissos na cidade.
Pode ser um investimento, mas o amor algumas poucas vezes dura mais que o prazo de um mestrado. Não, esqueça essa palavra! A gente dá corações, mas eles são verdes! Amor é uma palavra proibida nesse contexto.
Vamos ver o que rola, sem expectativas, sem nada em mente. Nada, nada, nada.
Eu não lamento em dizer que também sou dos que não está interessado nisso. Não imagino casamentos nos meus universos de três segundos expandidos. Não nos vejo em jantares familiares, distribuindo aos sobrinhos os presentinhos de Natal. O que vejo…
“¿Qué buscas?”
Não sei. Busco só as partes boas de se estar com alguém. Que seja perfeito, lindo, que não me dê preocupações, que desapareça quando me convenha e que esteja junto comigo quando eu precise. Quero não estar só, mas não me movo um milímetro para me aproximar do menino da bomboniere.
Ele tira a máscara e me olha como um lobo. Ele quer que eu o reconheça, ele sabe que eu o reconheci, mas eu não posso falar com ele.
Como é que eu não tinha percebido antes que esse homem não tem queixo? Como não notei que a mandíbula dele desaparece escondida por dentes gigantes, famintos, que parecem ter devorado o próprio pescoço?
Eu queria que ele voltasse a colocar a máscara, estamos em uma pandemia.
Não, não vou ser hipócrita: quero que ele ponha a máscara por que ele é feio e por que eu acho que o rosto dele não vai se sustentar muito tempo sem ela. Ele já está babando sem a focinheira.
E se eu tirasse a minha máscara? Se eu dissesse “me salva” e mostrasse o buraco negro que eu escondo na garganta, os fantasmas nos ouvidos, os esqueletos nos armários. Como veria o meu verdadeiro eu, esse Lucas? Esse Miguel? Esse santo ser?
Me bloquearia. Eu faria o mesmo.
Aí vem o nº 23. Ele coloca o “tapabocas” e vai entrar. Eu olho para o horizonte como se aquele não fosse meu ônibus. Finjo que estou perdido e que não me importa. Finjo que me interesso pelo cachorro que ainda tenta agarrar uma pomba preguiçosa.
Sarah alcança o fá em sétima nos meus ouvidos. O pico da loucura. A pica da doçura. Não, que péssima rima, que péssima quarta-feira. Deveria parar de esperar e ir andando.
Ele passa por mim, bem perto. Talvez eu não o conheça do aplicativo. Talvez ele seja só um homem gente boa e que tem lindos olhos.
Ele acena para mim e eu sorrio por baixo da minha máscara, mas deixo que ele se vá. Eu sei que ainda me restam 254 pretendentes. Entre eles pode estar me esperando o cara certo. Não pode?
Alguém ainda espera algo hoje em dia?
Bruno Bucis é jornalista e escritor, autor de “Noites de Sol” (Tagore, 2017).