Luís Henrique Pellanda
Os espantalhos chegaram a nossa cidade no início da década passada, logo após o desaparecimento dos pássaros. Na época nós os víamos nos cruzamentos centrais, quietos, apenas observando os malabares e os artistas de rua, talvez invejando a riqueza de suas articulações, a flexibilidade da coluna humana, a destreza com que se curvavam para agradecer aos aplausos que, a bem da verdade, nem recebiam.
Depois, conforme cresciam em número, os espantalhos foram se amontoando onde dava, de preferência debaixo de marquises e viadutos, desalojando os mendigos que já ocupavam aqueles pontos. Admito, sim, que poucos se revoltaram ao ver toda aquela gente sendo expulsa de seu território e, mais tarde, da cidade. Quando as migrações começaram, houve até quem comemorasse. Não fui um deles, digo em minha defesa. Os mendigos rumavam para o interior em grandes grupos de gente a pé, espremendo-se pelos acostamentos de estrada. Mas o que fariam lá, onde nada mais vicejava nem progredia, francamente, não nos dizia respeito.
Logo vimos, no entanto, que, em relação aos mendigos, os espantalhos levavam muitas vantagens. Em primeiro lugar, não precisavam comer nem beber. Como eram feitos de palha, madeira e pano, não ligavam para a chuva, para a umidade, o frio, o calor, nada. Secavam fácil e, se não secassem, não fazia diferença. Jamais adoeciam. A única coisa que podia feri-los era o fogo, o que não constituía novidade alguma, pois o fogo também feria nossos tradicionais e obsoletos mendigos de carne e osso.
A princípio, portanto, ninguém levantou objeções morais ou práticas àquela invasão de espantalhos. O problema é que eles, diferentemente dos mendigos de que nos tinham livrado, nunca nos pediam nada, nem sequer se curvavam, e demoramos a perceber o quanto essa deficiência motora nos era repulsiva. Não importava o quão ruim fosse a situação em que estivessem metidos, aquele cabo de vassoura que lhes servia de eixo não se dobrava.
Talvez por isso as coisas tenham dado tão errado. Se ao menos eles se dobrassem um pouquinho, se fossem mais maleáveis, é certo que não teriam despertado tanta animosidade entre nós. Houve muita intransigência da parte deles, o que é realmente lamentável. Porque, quando os primeiros espantalhos começaram a amanhecer queimados em pontos de ônibus, debaixo de pontes ou em lixões na periferia, poucos se animaram a defendê-los. Algumas pessoas, menos intolerantes, até fingiram escândalo e estupefação. Eu próprio fui um deles. Mas logo nos aquietamos. Não havia muito o que argumentar em seu favor. Afinal, como muito se alegou naqueles tempos, já não existiam mais pássaros que justificassem a existência dos espantalhos.
Luís Henrique Pellanda é escritor e jornalista, autor de “Na barriga do lobo” (Arquipélago, 2021).