Paula Fábrio
Quando Divino chegou à plataforma de trens em Poá, o vento arrastava o mundo. Um vento sujo que trazia de tudo, menos esperança. Divino fechou os olhos. E desculpou-se: não se trata de um crime.
Como se acordasse, viu o trem estacado à sua frente. Portas abertas. Um sinal. O vento carregou Divino para dentro. Refugiado num canto, aguardou o arranque. Seu corpo resistiu à partida. Mas depois, depois chacoalhou à vontade. Pegou ritmo. Divino sabia de cor o percurso até o Brás. A janela era um quadro após outro, após outro e outro: pet shop, casa de carnes, um pouco de trilho, outro tanto de mato, um muro pichado, outro muro pichado, um cãozinho a dormir, com a pata quebrada. Sobre os tijolos sem reboco das casas grudadas, uma a uma, duas a duas, três a três, a caixa-d’água azul, com a inscrição Fortlev, Fortlev, Fortlev, Fortlev.
Um tranco antecedeu a parada. E quando a porta se abriu na primeira estação, uma corrente de ar gelado percorreu o vagão e encontrou Divino com o pensamento na irmã. Era a primeira vez que a deixava para sempre. Baixou a cabeça, encarou os sapatos surrados. Herança do pai. O pai engraxate. A mãe nunca houvera. A mãe era ele. Pensou em voltar.
Laura estaria dormindo. Ele compraria bala Fini ou bolinha branca. Teria de esperar que acordasse, ela andava arisca. Aguardaria sentado sobre a capa do sofá, que ele mesmo lavou até o tecido ficar transparente, como agora, e então não teve mais coragem de lavar. Ela viria pisando com a parte lateral dos pés, desequilibrada, feliz com a nova mania. Depois, explodiria num gemido de contentamento. Meio de lado, meio de frente, apanharia o pacote de suas mãos, e tentaria abri-lo, até sua paciência se esgotar. Derrotado com o fracasso da irmã, ele a ajudaria mais uma vez. Abriria o pacote e ela, ligeira, o tomaria de novo de suas mãos, para em seguida executar, no meio da sala, uma dança idêntica à das outras jovens que Divino conheceu na fila da fisioterapia.
Itaquá. Dez estações até o final. E o seu final?
Não conseguia imaginar-se cuidando da irmã para o resto da vida. Ou pior, conseguiu. Nesse momento, o trem estacou.
Uma capivara atravessou a linha. Celulares nas mãos, ninguém viu. Ela também fugia.
Divino deixou o celular para a irmã. Compraria outro, não queria que rastreassem seus passos. Seria um homem novo. O trem partiu.
Seguiu sonhando de olhos abertos: à frente do posto na Rio-Bahia, conforme lhe prometeram. O macacão com emblema, como nos filmes americanos. A luva grossa, viril. Poucos conhecidos, apenas o trânsito de carros e pessoas. À noitinha, na palhoça, começaria a fumar. Uma lata de cerveja, o pito na boca, o grilo ali perto. Uma cadeira com o formato do seu corpo. À noitinha, bem à noitinha, pensaria em nada. Ou pensaria na irmã.
No trem, alguém ao seu lado cedeu lugar a uma mulher arqueada. Distraiu-se. Quando se deu conta, Divino estava com o pai e a irmã na sala de casa. Alguns anos antes.
Havia lama pelos joelhos. Armário, sofá, panelas e brinquedos se misturavam com o lodo. Divino segurava a televisão contra a parede, enquanto o pai não vinha em seu auxílio. Laura fazia girar o dedo indicador ao lado do nariz, sem parar. O pai trazia um balde nas mãos. Os braços de Divino tremiam, ele perdeu o equilíbrio e a televisão foi banhada pelo caldo turvo da enxurrada, virou papelão. Os braços de Divino ainda ficaram a tremer por um tempo.
Agora, contudo, seus braços só precisam escorar uma filipeta de papel amarronzado pelo uso, áspera, com um pedido de ajuda ao qual ele não pode atender. Divino segura o papel como todos os outros no carro, por dó, receio, meio sem querer, com um pouco de asco; algum descaso também; impotente. Aquele bilhete, aquele rogo se repetem vagão a vagão, como a imagem das caixas Fortlev, como o dedo indicador de Laura a girar em volta do nariz.
Itaim. Se quisesse voltar, bastava atravessar a plataforma e tomar o primeiro trem com destino a Calmon Viana. Assim, não amargaria a culpa de deixar a irmã com uma baba no canto do lábio, seguindo os passos de mulheres de avental azul com batom nos dentes. Mulheres que se enternecem, às vezes. Extenuadas, abrem o primeiro botão do jeans para desanuviar a barriga. Extenuadas, acendem um cigarro num canto qualquer do pátio, para apagá-lo antes do fim. Extenuadas, assinam o ponto e sorriem para meninas como Laura. Porém, muitas nem olham para Laura, tampouco para as outras meninas.
Ermelino Matarazzo. Divino observou o bicicletário ainda novo do lado de fora. Dezenas de magrelas. A verdinha lá da ponta lembrava sua velha Azeitona. Ganhara uma bicicleta usada do homem da carne. Época boa. Visitava a tia em Ferraz, comia bolo de rolo, trocava moedas por revistas de páginas grudadas. Laura ainda não existia. Era feliz.
No dia em que a menina nasceu, teve um pressentimento: o que haveria de fazer com uma irmã? A princípio, Laura era um bebê como os outros, só um pouco mais lento. Mas depois se tornou angulosa e labiríntica. E já não havia mãe. E quase já não havia pai.
Com o tempo, Divino passou a ensinar tudo a Laura. Tudo. Tudo mesmo.
Arrependeu-se.
Fez um sinal com o braço e um vendedor cambaleou para o seu lado. Gastou um real e apanhou as balas, escolheu o pacote com as vermelhas. Laura detestava as verdes, dizia que eram a-ve-ve-das. Divino sentia nojo ao ver a espuma no canto da boca da irmã. Sentia vergonha. Certa noite, Laura emitiu um som penoso ao rebelar-se em seu colo: ssa-ssa-saííí. Espuma branca, de novo. Essa lembrança é tão viva como a propaganda da faculdade a 59 reais à sua frente. Na foto, o apresentador de tevê tem a mesma aparência de um noivinho de bolo.
Considerou: devia voltar para casa. Fritaria ovos no almoço. No dia seguinte, com sorte, correria na oficina do Clóvis para enrolar um motor elétrico e ganhar duas notas dobradas. Mas o Clóvis andava tossindo e tinham encontrado nome para sua tosse, o que não era bom. Divino considerou mais uma vez a inconveniência de descer do trem. Combinara encontrar o Boliva-chino no Largo da Concórdia, que o levaria para a Rio-Bahia, a bordo de um ônibus mais barato, bem em conta mesmo, sem fiscais, livre de problemas, um ônibus não, talvez uma van, dependia do número de pessoas, disse o Boliva-chino.
Engenheiro Goulart. O trem pegou velocidade. E quando Laura começasse a menstruar? Consultou as horas. E se ela incendiasse a casa? Os minutos. E se algum vizinho chamasse a polícia? Contorceu-se. E se outro homem entrasse lá? Excitou-se feito um monstro. Nesse instante, o vento fez um redemoinho com a sujeira no chão, elevou-se com fúria. Saltou da poltrona. Atravessou a plataforma e tomou outro trem. Seu destino mudava.
Finalmente corria, corria por dentro. Por dentro de si. Recomeçou: Fortlev, Fortlev, Fortlev, Fortlev. Pet shop, pet shop, pet shop. Pessoal, um real, pessoal, lá fora custa cinco real, pessoal, chokito, chocolate nestlé, pessoal. Bolinha branca, bala Fini. Tudo de novo. A vida demora no trem. Cachorro, cachorro, laje, laje. Cachorro e laje. Exausto, apagou. Dois sonos. Vinte sonos. Cem anos. Um pesadelo. Um sobressalto. Outro pesadelo. Outro sobressalto. Horas, dias. Despertou: nova excitação: olhos elétricos com a paisagem lenta, estática. Desejou pôr as mãos sobre o trilho quente e impulsionar o trem. Cada vez mais, cada vez mais.
Quando cansou de desejar, o choque. Não viu o trem parar. Fim de linha? Agora ele todo latejava fora do vagão. A passos largos, afastou-se dali. Já na rua, correu, correu mesmo, começou a suar, ficou tonto. Pensou em Laura, morta. Despropósito. Correu bem umas três quadras, depois se arrastou. Chegou a passar a mão pelo poste de luz, encostou a cabeça e ralou um pouco a têmpora. Recobrou parte da respiração e seguiu. Dobrou a esquina, quase tropeçou na fiação que beirava o chão. Das três casas sem reboco, a dele era a última. Do outro lado, as casas mais antigas da rua, pintadas de rosa, branco e verde.
O vento mais feroz àquela hora. Deu dois passos e percebeu a viatura que se afastava. O trem agora era seu peito. Casa aberta. Correu para Laura.
Ainda na porta, a vizinha gritou: não adianta, eles a levaram!
Quem?
A polícia. Os homens tudo!
Ele não entendeu, ou não quis.
Berrou mas era um cão ganindo: quem?
A vizinha balançou a cabeça.
Divino entrou com fogo no rosto, bateu porta, olhou atrás das coisas: Laura não estava. O vento arrastava o mundo. Deu um murro na mesa da sala e fez um papel voar. Catou aquilo do chão.
Intimação: carimbo: denúncia: polícia.
Mas eu não abandonei ninguém, pensou, defendendo-se.
Era sobre assédio. Laura havia conseguido.
Paula Fábrio é escritora, autora de “Desnorteio” e “Um dia toparei comigo”.