Beatriz Leal Craveiro
“Três latas de tinta branca, um rolo para pintura, e um final de semana inteiro para pintar um muro e duas portas de banheiro”, dizia o bilhete da escola. O que é isso aqui, meu filho?, perguntei a Luís, que não me respondeu.
Fui esclarecer a situação. A coordenadora me mostrou o muro pichado: o símbolo marcado umas sete vezes. Depois carimbado nas portas de banheiros de dois andares diferentes. Tem certeza de que foi o Luís? Dê uma olhada nos livros dele, ela respondeu. Cheguei em casa, abri o de Matemática. Dezenas do símbolo estampado nas páginas, também no livro de História, Geografia e nos cadernos.
O que ele estava tentando comunicar? O que ele andava lendo? Quem era meu filho, afinal? Gritei com Luís. Ele se fechou no quarto e, como com frequência, chorou. Tentei amansar a voz, entrei no quarto com uma folha em branco e pedi para ele me ensinar a fazer.
Se você olhar bem, mãe, são dois desenhos, duas pecinhas de Tetris, desenhadas ao contrário uma da outra, uma em cima da outra, cruzando bem no meio, perpendiculares.
E por que desenhar quinhentas vezes? Olha só seus livros como estão…
Quando o professor fica só falando para a gente ouvir, fico desenhando, que é para me forçar a prestar atenção.
E por que este desenho?
Não sei, mãe. Acho que inventei. Aí fiquei tentando desenhar perfeitamente, sem réguas. Está vendo como melhorei? Se você for lá na página tipo cem do livro de Matemática, vai ver que está mais bem feito do que na página 40. As linhas estão perfeitamente retas, cruzam-se no meio. E os ângulos… São oito ângulos retos! E olha como eu já estou conseguindo fazer perfeito, sem régua. Aí, se você olhar direito, tem um losango escondido nesse desenho. Como se cada lado do losango tivesse sua linha desenhada só até a metade. E aí, se você completa essas linhas, tchan-rã! Um losango! E aí você descobre mais quatro ângulos retos escondidos! Não é legal?
Mas filho, é um símbolo muito feio…
Como, mãe?! – ele foi abrupto e me assustou um pouco – Oito ângulos retos! Eu gosto! E fui eu que inventei.
Não filho, não foi você quem inventou. Deve ter visto em algum lugar…
Não mãe, fui eu que inventei.
E por que você pichou isso pela escola?
Depois que o Tiago viu meu livro de Português todo rabiscado, cochichou com o Lucas e com o Edu. Qualquer pessoa que folheasse algum dos meus cadernos, começava a me olhar estranho. Mas sabe que foi bom, mãe? Pararam de ficar pedindo minhas lições de casa para copiar. O problema foi quando chegou nas meninas e a Júlia, que senta lá na frente, sabe? Contou para a professora, que gritou comigo na frente de todo mundo. “Você sabe o que isso significa?!!”
E o que você respondeu?
Nada, né, mãe. Queria dizer “significa que sua aula é chata”, ou que eu gosto de desenhar a mesma coisa diversas vezes até ficar perfeito. Mas não consegui falar nada.
E aí você chorou?
Na frente da sexta série inteira.
Mas então por que você não parou de fazer o desenho?
Porque é meu desenho, mãe. São oito ângulos retos mais quatro secretos!
E as pichações?
Eu queria que as pessoas vissem que meu desenho é muito legal.
E você não conseguiu explicar como está fazendo agora para mim…
Ninguém ouve, mãe. Ninguém me deixa completar as frases – e aqui ele foi aumentando a voz. Luís detesta ser interrompido – Ninguém me ouvia e só ficavam dizendo que era feio, que era feio, as professoras gritavam, me mandavam para a coordenação, e eu não conseguia entender por que eu tinha que parar de desenhar um desenho tão bacana, são oito ângulos retos!
Filho, então vamos fazer o seguinte… Vou te ensinar um desenho que é bonito, que vai justamente compensar toda essa situação… Aí nenhuma professora vai gritar com você de novo, que tal?
Tem ângulos retos?
Retos não, mas complementares, mais legal, né?
Mas se não são retos, vou precisar de transferidor, e não posso roubar…
Só no começo, Luís, depois você aprende a fazer sozinho.
E como é esse desenho?
São dois triângulos. Um em cima do outro, um virado para cima e o outro virado para baixo. Tipo o seu desenho, duas formas iguais, uma para um lado e a outra para o outro, sobrepondo-se, de forma que tudo fique perfeitamente simétrico.
Ok, estou ouvindo…
É isso, acabou. Um triângulo para cima, depois outro para baixo, um em cima do outro. Faz aí. Você vai ver, forma uma estrela!
Luís desenhou. O primeiro ficou mais ou menos, embora ele já fizesse as linhas perfeitamente retas. Colocar um triângulo sobre o outro fazendo as interseções nos quatro pontos exatos é que era o difícil – pior que o desenho anterior, que tinha só um cruzamento, bem no meio da figura.
Gostei, mãe… Mas vou demorar para ficar bom nisso.
Ótimo, vai mantê-lo ocupado, pensei.
Mas mãe, por que inventaram que aquele desenho era feio e que esse agora é que é bonito?
Expliquei, ele ficou muito sensibilizado com a história, motivo pelo qual eu evito o mundo para ele. A cada acontecimento histórico que aconteceu de verdade, mãe?, sim aconteceu de verdade, são algumas noites sem dormir, livros e filmes a que temos de assistir juntos, obsessivamente, até esgotar o assunto e ele voltar a ter paz, sabendo que aquele episódio – Holocausto, Hiroshima, romanos perseguindo cristãos, cristãos perseguindo protestantes, mulheres nas fogueiras – terminou no tempo. Não sei como ensiná-lo a viver em um mundo onde a história ainda não parou de acontecer.
Algumas semanas depois, fui dar uma olhada nos livros do Luís, coisa que eu sempre deveria ter feito. As estrelas de seis pontas estavam lá, obsessivamente perfeitas. Só que, agora, cada uma vinha acompanhada de uma meia-lua crescente à esquerda. Qual será a desculpa dessa vez…? Os ângulos em uma meia-lua não são retos, tampouco complementares.
Beatriz Leal Craveiro é escritora e jornalista, autora de “Mulheres que mordem” (Imã Editorial, 2015), romance finalista do Prêmio Jabuti.