Luiz Antônio Gusmão
A chuva se misturava às lágrimas que molhavam minha barba escura quando senti sua mão tocar meu braço. Despertei.
— Sonhei que a cidade sumia – ela falou.
Ainda sonolento, eu me reposicionei na escuridão da cama para ficar de frente ao seu corpo: importante ouvir as palavras assim, a encarar o poço invisível de onde provinha sua voz.
— Eu a via do alto – continuou. — Ela se dissolvia como açúcar no chão molhado.
Voltei a dormir, embalando meu sono com sua voz.
Agora, eu já tinha me acostumado. Mas quando Estela começou a me contar seus sonhos no meio da madrugada, aquilo me assombrava. O toque frio de sua mão nas minhas costas, no peito ou no braço me despertava como um relâmpago. Logo que ela pressentia meus olhos abertos na escuridão, começava a falar. Eu recebia suas palavras como se ouvisse um lento trovão ao longe.
Na manhã seguinte, antes de tudo, trancada no quarto, ela escrevia num pequeno caderno escolar que nosso filho tinha deixado incompleto, enquanto eu preparava o café.
Sentado na mesa da cozinha, checando as notícias do dia no celular, eu a aguardava.
Ainda morávamos na imensa casa que tínhamos construído num condomínio, o mais distante, onde tinha sido possível adquirir um lote formidável.
Estela saía do quarto envolta nas frágeis transparências de uma camisola, através da qual se entrevia a silhueta sinuosa do seu corpo. Às vezes, vinha sorrindo; às vezes, não. Eu não sabia o que era melhor, até que ela proferisse as primeiras palavras à luz do dia.
— Vão demolir aquele prédio abandonado no Setor Hoteleiro Norte – eu falei. — Vão aplicar uma técnica toda especial para reutilizar o material.
Não conversávamos sobre seus sonhos: ela já os tinha guardado.
— Ainda não vi nada. Quero comer primeiro.
Apontei o prato azul de louça pesada sobre a mesa:
— Fiz omelete. E café coado.
Segurando a xícara com as pontas dos dedos de ambas as mãos, ela bebeu o conteúdo como um padre que levava aos lábios o cálice de vinho transubstanciado da comunhão. Por trás de mim, a porta de vidro coava a luz da manhã e enchia a sala.
— Sem adoçar, como você prefere.
Ela sorriu. Tínhamos nossos códigos.
Nos dias de semana, nós nos separávamos nesse momento. Eu seguia para dar aulas na faculdade ou orientar alunos em suas pesquisas sobre história do urbanismo modernista (minha especialidade), discutir alguma tese complicada sobre a pavimentação das ruas como evidência material da cultura de precariedade e improviso no Brasil, ou referências obscuras sobre a extinção de cidades planejadas.
Estela permanecia em casa graças ao esquema de trabalho remoto que organizaram no tribunal. Saía para encontrar amigas em cafés e restaurantes, dar aulas de línguas para estudantes carentes, fazer consultas médicas ou coisas que eu, simplesmente, ignorava.
Não tínhamos mais crianças para levar à escola ou buscar na casa de algum amigo.
Mas era sábado. Teríamos de receber o jardineiro que havia encontrado um formigueiro imenso nos fundos do terreno e planejar as compras quinzenais.
Um facho de sol incidia sobre os cabelos castanhos dela e tive a impressão de que eles estavam completamente brancos. Seus olhos brilhavam. Vi, então, seu rosto prestes a se tornar idoso, dissolvendo-se na luz natural.
Sorri e ela correspondeu.
— Quero acompanhar você nessa demolição.
Luiz Antônio Gusmão é poeta, autor de “azul-planalto” (Kindle, 2020).