Pilar Bu
para Gabriela Damián
entrei no jardim das memórias com a boca cheia de sangue e mariposas batiam suas asas como um turbilhão no México também se faz assim nós todas irmanadas acolhidas e habitadas pelos rastros restos vestígios a mulher que guarda as chaves do paraíso invadido transmutado subvertido o mesmo que nos foi negado o medo brutal de nossas perigosas lágrimas que navegam barcos imensos de cicatrizes e marcas a guardiã que canta nossos nomes jamais esquecidos enquanto conjura feitiços atiçando os ossos armando os músculos quentes das holografias quase posso sentir o cheiro de laranja misturado com amêndoa roubando mais uma vez a sabedoria milenar de nossos versos e luzes brilham teus ossos espectrais na beira das águas revoltas minha mão procurando teu corpo etéreo que se dissipa permanecer é tarefa difícil para quem só conhece a morte mesmo viva o medo à espreita rondando as casas as ruas os dias traço uma linha imaginária fabrico um mapa com o nome de todas as mulheres perdidas apagadas rasuradas com as bocas costuradas os pés amarrados os olhos cravejados de rubis dou a elas o nome de latinas nessa terra que nos une pelo desejo radical de sermos humanas me deixo conduzir pelos prazeres nunca vividos inscrevendo em mim a palavra clivada no futuro que é esperança e instrumento queria anoitecer contra todos os mitos e gritar os gritos das lavadeiras rompendo e limpando a tua certeza chapada pálida tão bem orquestrada para nos aprisionar desprogramar esses sorrisos cínicos sobreviventes estáveis colocados à força na minha boca na tua boca cheia de sangue descosturado em holograma e lágrimas te espero amanhã para te abraçar apesar do medo e traçar as rodas de fuga para as nossas permanências vivas tão vivas que chega a doer sonharemos e esse não será o fim
Pilar Bu é poeta, autora de “Ultraviolenta” (Kotter, 2017) e “Bruxisma” (Urutau, 2019).