Mailson Furtado Viana
eu. o eu. já não sei. não se sabe. o eu. tudo reflexo. tudo ensaio. face. visage. o maior alarde dentro da carne-e-osso. o que eu quero ser. (?). o que o eu quer ser. apenas ver. sentir. mentir pra rir – mostrar os dentes.
o eu que existe dói. tropeça em ladrilhos. se queima em fogo baixo. xinga o diabo. dói em carne. não lucra. mora uma vida de tantas personas de eus riscados dia a dia. pecado a pecado. tabefe a tabete. riso a riso sem farda.
esse – o eu que existe e dói. que sente para se saber ao máximo o mínimo. e dessabe. esse o eu que existe. invisível a sentir.
e o viver é isso – uma escritura em carne. sem dar conta a encartes. sublimação ao desejo. o escrever em/a terra. que escreve invenções e outras vontades e eus possíveis de enxergar em tantos ensaios do eu.
montaigne ensaiou esse primeiro. veio a renascença e o mundo no homem. tantas possibilidades num só alicerce ósseo. tantas dobras na mesma superfície. nas luzes, diderot desembaraça o sonho de d’alembert – tudo sensibilidade. quede o pensar? diria descartes. mas “sinto, logo, existo” e tenho dito. e por aí vai até esses dias, que já nem cabem em si. que já não cabem no mundo. são mundos. paralelos e/em tantas tangentes. aí a gente. aí o eu – reflexo do próprio querer, que não sente que não dói, e são dois, três, zil, sem ninguém. afinal tudo é fotografia. e o eu está na minha frente num descompasso solene de desencontros. tudo abandono.
e também mora logo ao lado. dentro desse apetrecho de pulsos: músculos, nervos, artérias – reescrituras de vidas. mas quede? presente de passado. presente de distância em tempo e espaço e ausente de presença. quede o eu? guardou-se noutros encontros. vingou(-se) noutros. e cá também, e não mais. tudo poeira guardada? tudo dormência a vontades? passeio de falanges? um único toque e omnia quae me tangere. este o eu a se saber. o eu? tudo reflexo de desejo. vezes sem espelho. vezes só o dentro que ali não mora.
é tudo lá fora agora?
Mailson Furtado Viana é poeta, dentista e dramaturgo, autor de “À cidade”, vencedor do Prêmio Jabuti de 2018.