Mariana Lozzi
— Ali
— Onde?
— Ali, Mercedes, atrás de si, não vê?
— Vejo várias coisas.
— Não se faça de besta.
— Você disse que está sobre a mesa?
— Sim.
— Sobre a mesa, perto da jarra de suco?
— Não, Mercedes, dentro. Dentro da jarra de suco.
— Misericórdia…
— Fale baixo, que esse seu cochicho dá para ouvir lá da esquina. Está com cara que vão puxar as rezas, chegamos faz meia hora e ninguém disse nada. Estranho, um serviço assim em silêncio. Como se a Carmina não tivesse falado pelos cotovelos a vida inteira.
— Mas, Aurora, na jarra de suco? Colocaram a Carmina para descansar na jarra de suco?
— Não só colocaram a Carmina para descansar na jarra de suco, como foi para estar dentro dessa jarra que ela se apressou a morrer.
— Misericórdia, Aurora.
— E não diga que é uma jarra de suco, se a Carmina te ouvisse era capaz de voltar só para te mandar aos caralhos. Não vê que é de porcelana, que tem pinturas finíssimas, e um bico de ouro, a asa também? Lá, perto da base, umas letras antigas, uns rococós e querubins gordotos, alados, coisa do divino, mesmo, bem ali, coloque os óculos, não os de leitura, Mercedes, guarde esses, os de enxergar distâncias, isso. Parece coisa de séculos, desses pintores italianos já mortíssimos, muito celebrados. Ela dizia que era uma relíquia, pronunciava assim, re-lí-quia, e que se alguém saísse da casa dela com a jarra debaixo dos dos braços estava feito para a vida. A Carmina morreria mais três vezes antes de deixar outra pessoa tomar o seu lugar.
— O seu lugar no reino dos mortos?
— Sim, no reino dos mortos, mas sobretudo dentro da jarra. A Carmina se chamuscaria na fornalha mais três vezes para ser colocada ali, com os querubins dourados, as letras-rococó, com os pintores italianos e o caralho.
— Credo, Mercedes.
O Senhor esteja convosco. Ele está no meio de nós. O nosso coração está em Deus. É nosso dever e nossa salvação
— Mercedes…
— Quê?
— Assim ao lado da mesa, perto dos copos, é bem capaz de beberem a Carmina por desvio. Não é melhor avisar?
— Avisar o quê?
— Que a gente periga beber a Carmina por desvio.
— Como?
— Da mesma forma que se bebe um café solúvel. Misturar as cinzas com água, açúcar, e mandar tudo para dentro. Engolir o corpo da Carmina e arrotá-lo daqui até a missa de sétimo dia.
— Tenha respeito, já disse que foi para não perder essa jarra que a Carmina se apressou a morrer. Olha que a família te escuta, Mercedes.
— Que família? Só vejo as beatas da casa da piedade aos cochichos ali por trás da pilastra. Sim, vieram todas, mas porque só sabem andar de bando, e se uma sai de perto o grupo se desconjuntura, como um boneco de corda, portanto dá na mesma ter vindo uma ou estarem todas aqui. Veio também o verdureiro, a menina dos búzios e a diarista — decerto a Carmina prometeu deixar algo para eles, estava devendo até a sola dos sapatos, me disseram —, mas nem sinal da família. Parece que quando o Aldo morreu levou os filhos com ele, nem isso deixou para a pobre da Carmina.
— Estão ali, não vê? Pois coloque os óculos. Não os de leitura, já disse que são os de olhar de longe, Mercedes, vê os dois garotos com os celulares, um de cabelo comprido e o outro com um brinco no nariz? Pois são eles os netos da Carmina, e parece que vieram sem os pais. Decerto obrigados, para sair nas fotos, por mais que ninguém tenha se dignado a trazer uma câmera para fotografar a Carmina na jarra italiana, que Deus a tenha.
— Que Deus a tenha.
— Quem vê até pensa que nasceram por brotamento, os filhos da Carmina, como se não tivesse sido ela a carregá-los por nove meses na barriga, a limpar as bundas e a pedir dinheiro na casa de piedade toda vez que o traste bebia o sustento deles.
— Não faz bem falar assim dele.
— Do traste?
— Não faz bem falar assim dos nossos mortos. Dá pra pegar uma sarna e ficar se coçando a vida inteira.
— Como os cachorros?
— Não, uma sarna do espírito. Como uma simpatia, só que ao avesso.
Creio em Deus pai e em Jesus Cristo que nasceu da virgem Maria. Foi crucificado morto e sepultado Desceu à mansão dos mortos Ressuscitou ao terceiro dia.
— Talvez tenha sido isso.
— O quê?
— Isso que acometeu a Carmina para morrer assim, no varal, grudada pelas mãos, feito um bicho.
— Misericórdia, Aurora, a família logo ali, vai que escutam.
— Escutam nada.
— E o que tem a ver as rezas do padre com a morte da Carmina? Ela também vai ressuscitar no terceiro dia, e de coitada se recriar santa, como seguramente foram todas as santas antes de se santificar?
— Tem a ver que não cabe aos vivos sentir raiva dos mortos. Raiva de morto mata. O tempo da raiva é o mesmo da vida, depois complica. Já vi mais de uma pessoa encaixotar antes da hora por comprar briga com os mortos. É uma aposta perdida, mancomunada.
— Desde quando, Aurora? Todo mundo sabe que a Carmina sentiu raiva do traste toda a vida, que diferença isso faz na morte?
— Calma, Mercedes, que você está me confundido com essas coisas da vida e morte, morte e vida, tudo embaralhado, como se fosse questão de sorte se perder ou se salvar, tirar uma carta ou outra, mas necessariamente tirar, e Deus marcando faltas, dono de todas as apostas, até das não feitas. Estou tentando dizer que a zanga que a Carmina alimentava do traste do Aldo a colocou para descansar na jarra de suco antes da hora, porque não faz bem comprar briga com os mortos, e se o Aldo foi um traste em vida imagina do que é capaz morto.
— A zanga?
— Sim, a zanga pelo Aldo ter morrido antes dela e de maneira estúpida. Só de cisma a Carmina morreu na sequência e de maneira mais estúpida ainda.
— Tirando as calcinhas do varal antes da chuva cair, coitada da Carmina.
— Sim, tirando as calcinhas do varal.
Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador. Se a ti me confiou a piedade Divina
— Mercedes?
— Me deixe, Aurora.
— Mercedes, como sabe que eram calcinhas?
— Fale baixo, Aurora, estão começando a olhar, como se já não bastasse o calor, os insetos, e a cantoria das beatas.
— Por que não meias?
— Hein?
— Por que ela não tirava do varal um par de meias, lençóis, ou as calças do marido morto quando o raio despencou do céu, com a força de um testamento?
— Ficou maluca, Aurora?
— Pouco sobrou da Carmina, muito menos do varal. Ela morava sozinha, ninguém viu cair a chuva, muito menos o raio, ninguém viu, em absoluto. Como sabem que ela dependurava as calcinhas?
— Estou tentando escutar.
— Como a Carmina foi atingida por um raio, se há meses não chove aqui, se os poços secaram e o gado morreu, e levou consigo o sustento de muitos, o Aldo e a Carmina inclusos? Como ela foi atingida por um raio? Como cai um raio sem antes cair a chuva? Como, Mercedes?
— Faça silêncio, estou tentando escutar.
— O que foi, Mercedes?
— Escute, Aurora. Escute.
Bendita seja a zanga da Carmina, que correu para pegar as calcinhas no varal e foi atingida por um raio. De coitada, foi santificada e depois de santa nunca foi coitada. Que Deus a tenha.
— Amém.
Mariana Lozzi é escritora e jornalista, autora de “Mar de telhas” (Urutau, 2022).