ou confissões da faxineira das pessoas que morreram sozinhas
Fabrina Martinez
Meu nome é Joana, tenho 45 anos e trabalho como faxineira em casas de pessoas que morreram sozinhas. Verdade verdadeira é que meu nome não é Joana, eu não tenho 45 anos, mas eu realmente trabalho como faxineira em casas de pessoas que morreram sozinhas, que também é outro jeito de dizer que elas tiraram a própria vida. Acontece que esse não é um assunto bem recebido numa conversa, então eu conto que sou apenas uma faxineira. Ninguém se interessa pela vida da faxineira. Nem sei por que aceitei te dar essa entrevista, já que ela não me trará ganho nenhum. Mentira, sei sim. De uns tempos para cá, tenho sido contratada por pessoas que querem se matar e querem garantir que o corpo, ao ser encontrado, esteja num lugar limpo e organizado para que as pessoas não se distraiam do que o morto tem a dizer. A obsessão pela carta de suicídio é um outro efeito do descaso. Por que você espera que eu explique a minha escolha por escrito quando estava tudo aqui? Pessoas também são legíveis. Cada indivíduo é um idioma à espera de tradução. Trabalho por conta própria e não faço propaganda dos meus serviços, os clientes chegam por indicação. Tudo começa com um telefonema cheio de respirações, pausas e tropeços. A morte também leva à objetividade. Fico me perguntando se, algum dia, alguém teria a coragem de me pedir um orçamento calçado na realidade.
Boa tarde. Quero orçar a limpeza de um apartamento de 32 metros quadrados em que o corpo da minha sobrinha foi encontrado na manhã de hoje. De acordo com o legista, ela deve ter morrido de ingestão de remédios e álcool há mais de 25 dias. O corpo está em estado avançado de decomposição e o cheiro já impregnou seus móveis e paredes. Há secreções secas no chão e ela deve ter se arrastado de um cômodo a outro porque paredes e rodapés têm marcas de sangue e pedaço de pele e algo que talvez seja unha. Tem vermes por todos os lados e eu não sei explicar detalhes mas me parece um lugar que vá precisar de uma limpeza detalhada. O chão é de taco e, junto ao sangue e chorume, tem folhas secas de samambaia e outras plantas. Você gostaria de vir aqui orçar o serviço?
Quem me liga é, geralmente, algum familiar próximo, mas distante o suficiente para negociar comigo. O valor da minha diária é muito mais alto que o valor do mercado ‘regular’. Às vezes, dependendo do lugar e da família, pode ser até 20 vezes maior do que o valor de uma faxina normal. A hora em que sou contratada é um dos primeiros momentos em que começo a dar razão pra quem se mata. Raramente sou contratada por pessoas que não sejam ricas. Pobres não moram sozinhos ou são exterminados na rua. Aí fica por conta do serviço público.
O que me torna boa para esse serviço é que eu nunca julgo quem se suicida. A família? Sim. Julgo quase sempre. Bem menos do que poderia, inclusive. Sinto que não tenho direito de dizer nada sobre quem tira a própria vida ou morre sozinho, mas da família vou falar sim. Falo mesmo. Falo tanto que isso meio que atrapalhou os negócios por um tempo. Famílias ricas deixaram de me chamar porque elas se sentiam expostas. Acho bonita a forma como falam as pessoas com dinheiro. Expostos. Sabe o que quer dizer expostos? É a consciência de que, se você olhar para uma morte bem de pertinho, ela deixa de ser um suicídio e se torna um assassinato. Esse é o pior tipo de descoberta que posso fazer numa faxina. Mas eu não quero falar disso porque, no fim do dia, são poucos os vivos que importam. Depois de um tempo, as pessoas ricas mudaram seu comportamento comigo e voltaram a me chamar. A verdade é que a concorrência é baixa, então a gente consegue impor respeito e cobrar dignidade nesse mercado. Pra gente e pros mortos.
Comecei nesse emprego meio que por acaso. Trabalhava numa funerária e sempre fazia horas extras limpando o lugar onde as pessoas eram preparadas para seu enterro. O dono dizia que meu capricho era de outro mundo e eu pensava que ele era um babaca desse mesmo. Um dia ele me chamou para ajudar a buscar um corpo. Era uma mulher, esposa e mãe, que havia morrido sozinha. Ela foi encontrada oito dias depois pelo marido que estava voltando de uma viagem a trabalho com a secretária, em Alagoas. Sabe outra coisa que eu gosto nos ricos? É que o dinheiro elimina o senso do ridículo e eles realmente acham que frases como “viagem a trabalho com a secretária em Alagoas” tenha apenas o significado literal. A mulher, no caso a esposa, estava no chão da cozinha há pelo menos uma semana. Era o que diziam as moscas. Enquanto meu chefe conversava com o marido consternado e bronzeado, peguei um saco de lixo e fui retirando os vermes que estavam no chão. Depois, com o papel toalha, fui limpando os resquícios líquidos do corpo. Deixei tudo mais ou menos organizado para que quando os homens entrassem, eles pudessem ver a mulher morta e não apenas as coisas que tiram atenção da morte em si. Não sei se falei direito, mas a sujeira em volta do corpo assusta mais que a perda. Tem muitos anos que me pergunto o que a pessoa sente no primeiro segundo depois de encontrar um corpo. Eu gostaria de entender como o estado do corpo afeta o sentimento. Um corpo putrefato é o testemunho de que não adianta tentar fugir daquilo que vem de dentro.
O marido, agora só bronzeado, ligou na Funerária e me ofereceu um bico. Ele queria que eu limpasse a casa e tirasse qualquer vestígio de morte. Nada me disse sobre os resquícios do abandono. Ele me ofereceu mais dinheiro do que eu ganharia até o final daquele ano com o meu salário, sem os descontos. Estávamos em abril. Cortinas, tapetes e almofadas foram direto pro lixo. Não existe produto que limpe o fedor do esquecimento. Tinha marcas de sangue nos armários da cozinha e, até hoje, sinto uma certa culpa por não ter usado os produtos certos para limpar de vez o sangue. Sempre tem sangue. Sempre. Algumas vezes tem fezes e urina. Nem sempre. Sangue? Sempre.
Muitas coisas mudaram desde aquele primeiro corpo. Acho que foi por isso que aceitei essa entrevista. Quero falar dos mortos. Os mortos falam e falam alto. Já na minha primeira vez, criei uma rotina de respeito e dignidade para com essas pessoas. Os mortos eram pessoas e continuam pessoas depois de mortos. Quando chego num lugar, a primeira coisa que faço é fechar o olho e conversar. Não é só pedir licença, sabe? É me apresentar. Digo meu nome (o de verdade), falo o que estou fazendo ali, quem me chamou e que estou ali por ela. Mas nunca, em hipótese alguma, digo que sinto muito. Não minto para os mortos. Não sinto muito por eles. O que sinto e o tanto que sinto é diferente. Não cobro caro para tirar odores, recolher germes ou apagar marcas. Cobro caro para ouvir, para organizar dores e escaras que levam uma pessoa a morrer só. Cobro caro para encobrir crimes de negligência. Cobro caro para ouvir de um morto o que ele nunca teve chance de dizer em vida. Daquela mãe e esposa, ouvi tristezas e abandonos. Ouvi sobre filhos ocupados com suas próprias vidas, ouvi sobre a predileção do marido por secretárias magras e jovens. Ouvi sobre a tristeza de ter lençóis de muitos fios que nunca foram manchados com secreções como suores e salivas. Ouvi sobre a dor de nunca ter visto o mar. Limpei aquela casa e me despedi daquela mulher desejando que ela pudesse, enfim, aproveitar os dias sem corpo para sair daquela casa e ir ao mar. Não sei o que a necrópsia disse sobre sua morte, mas eu sei o que a faxina me disse sobre sua vida. Mulher.
Ultimamente tem aumentado o número de casos de pessoas que morrem sozinhas e mal tenho dado conta do trabalho. Acabei de chegar de um escritório. Minha primeira limpeza no corporativo. O rapaz morreu com a cabeça no teclado e acharam que ele tinha dormido. Só descobriram que ele estava morto pelas sucessivas vezes em que recusou café. Isso foi outra coisa que aprendi no meu trabalho. A morte acontece no ordinário. A gente pode faltar às festas de família, eventos dos amigos ou encontros amorosos e nada acontece, sabe? Mas aí a gente deixa a correspondência acumular na porta; não aceita o café ou para de correr atrás do carro do ovo depois de anos alimentando esse costume. Raramente limpei casas de pessoas que foram descobertas pelas razões de seus afetos, por seus amores. A morte pesa para quem vive no que há de mais ordinário na nossa vida. Menti. Não sei por que te dei essa entrevista. Quando chego em casa, penso que me dedico a ouvir os mortos por também morar sozinha. Espero que em algum momento existam pessoas dispostas a conversar comigo. Morta. Viva.
Fabrina Martinez é escritora, jornalista e produtora cultural, autora de “Sabendo que és minha” (Jandaíra, 2020).