Laura Elizia Haubert
“O destino conduz o que consente e arrasta o que resiste” (Sêneca)
I
Quando descobriu que estava grávida correu com suas pernas flácidas até a casa da cartomante. Era uma quinta-feira desgarrada, lenta, onde o calor espalhava ansiedade e suor entre os corpos. Foi assim, desgrenhada que chegou lá na porta da mulher. Pelo menos quinta-feira tinha promoção, quem pagava uma leitura de tarô ganhava um jogo de búzios, dois pelo preço de um.
Ela se sentiu sortuda, pela segunda vez naquele dia. Desejara tanto engravidar, meses após meses de frustração ao ver o sangue descer ralo. Agora tudo seria diferente. Ela seria uma mãe. Era a coisa mais relevante que tinha feito com sua breve vida, podia provar um gostinho de vitória que não conhecia. Tinha sabor de menta com chocolate. Pena que a sorte tem sua própria agenda. Tão rápido quanto veio, ela se foi. Bastou a jovem mulher pronunciar as palavras para a cartomante e ela tirar as cartas.
Pronto. Ali estava, a carta da morte. O bebê devia ser uma menina, como ela queria, devia ser bela, como ela desejava. E, por isso mesmo, não demoraria a ser levado embora, porque o mundo não permitiria nada assim. Bênçãos não eram para ela e seu tipo de gente. A senhora até deu um cartão de desconto para outra ocasião, de pena que ficou. Dava para ver que a senhora acreditava em sua profecia.
Pois a moça, por outro lado, decidiu que não iria crer. Foi logo exigindo a promoção do dia, que os búzios lhe pareciam mais confiáveis. Talvez tivessem uma história diferente para contar. A senhora moveu a tez sem hesitar, jogou os búzios e os assistiu caírem espalhados pela mesa. Não tinha coisa melhor ali não, e nem precisou dizer muito antes da moça desistir de escutar.
De repente, a jovem ficou irritadiça com sua própria ideia de ter ido até ali. O namorado já tinha falado que dava má sorte. Que não devia mais participar dessas coisas. Artes adivinhatórias não eram coisa que o senhor Deus gostava. Será que era isso que Deus estava lhe dizendo? Levantou-se e saiu, desesperançosa, arrastando os pés contra a rua de paralelepípedo, decidida a esquecer a profecia e a cartomante.
II
Eis que a criança nasceu meses depois, em um domingo de manhã, sem o pai que havia fugido no decorrer dos meses, sem a avó que havia morrido na semana passada. Ninguém veio visitá-la, não houve cerimônia nem presentes, veio ao mundo e foi tão somente isso que ganhou. A mãe exausta do parto, amamentou-a entre lágrimas de felicidade. Haviam sobrevivido.
Na segunda semana, quando a bebê parecia saudável e forte, deitou-a no berço e ficou observando de longe, como uma ave. Eis que então, pela cabeça, um pensamento furtivo a envolve, o presságio da cartomante a incomodando pelas beiradas, enchendo-a de preocupação. Acenou com a tez, decidida a não se deixar levar. Sim, sua vida tinha sido até então uma longa lista de infortúnios, porém, como poderia ela desanimar quando a coisa mais importante estava ali, agora? Sua filha.
Recordou-se amargamente dos dizeres da própria mãe que, ao saber da neta, uma menina, balançou os braços desconsolada. Outra mulher era mal sinal para a família, nem a sociedade, nem Deus gostava das mulheres. Era melhor elas se cuidarem dobrado, tinha afirmado antes de caminhar em direção ao quarto enquanto se benzia.
No sexto mês tudo ia bem, até, subitamente, não ir mais. Começou com uma febre tola. Ela deu um remédio e foi dormir. Acordou com o choro da criança que aos brados contava em agudos e graves seu desconsolo. Chorou junto enquanto envolvia a pequena nos braços, sem saber o que fazer ou dizer. Arrumou-se e saiu para o hospital no meio da madrugada.
O médico, descrente da gravidade, disse que era só uma virose, receitou algo que ela já tinha em casa e despachou as duas. Tinha mais o que fazer, deu a entender. Pacientes mais graves. A mãe assustada, voltou a casa, seguiu as instruções e passou a noite em claro velando pela criança que esperneava em prantos.
Pela manhã tinha decidido que não valia a pena correr o risco. Melhor ser uma crente tola que uma descrente. Agarrou a bebê, amarrou-a em sua trouxa de passeio, e saiu para a casa da cartomante na esperança de encontrar uma terceira via de solução. Quando chegou lá, não precisou de muitas palavras para que se estabelecesse o desconforto. A senhora tinha olhos de pesar.
— A senhora não teria um chá ou algum amuleto para ajudar a melhorar?
— Sinto muito, senhorita. Mas, a morte não se deixa enganar desse jeito não.
A cartomante sorriu empática e fechou a fresta da porta, decidida que o destino tinha encontrado seu caminho, e ela não seria tola de meter-se com ele. Teve dó da mãe, e teve dó do bebê, e teve dó de si mesma por conhecer aquela verdade.
Passou os dias seguintes à beira do desespero, voltou ao hospital, internaram o bebê. Não houve melhora. Ninguém sabia o que tinha de errado, exceto que seu corpo era quente, e seu choro de dor. A mãe já não dormia, e a sensação é que a vida lhe escorria entre os dedos como a areia da praia em um dia de verão caloroso.
No sexto dia, o médico desistiu outra vez. Precisavam do leito, hospital público, gente demais para ser atendido. Ela podia tentar uma vaga no outro hospital, talvez no posto de saúde. Ainda iam pensar a respeito do caso, mas fazer… bem, fazer não tinha o que ser feito, pelo menos enquanto não conhecessem a doença.
Então voltou a casa de sapê de dois cômodos que morava, deitou-a em seu berço, orou uma última vez ao seu lado e esperou. Infelizmente, parecia-lhe que a adivinha tinha razão de que a morte não se pode enganar de maneira nenhuma, seja com ciência ou com amor. A impressão que tinha era que a morte já estava ali, nos rejuntes entre azulejos, nos buracos da parede. Esperando, paciente, para tomar a vida para si.
Demorou três dias. Foi também numa quinta-feira, à noite, chovia torrencialmente, e a impressão é que o teto cederia sob o peso das gotas gélidas de água. Plock. Plock. Plock. Escutou um estouro, e lá se foi a luz. Ela se encolheu em um canto, cansada. Estava tão cansada. Já não tinha forças, nem lágrimas. Então, quando pensou que não poderia suportar mais, veio a cartada final.
Foi na forma de raio que quase a cegou. Um raio potente que abriu um buraco no teto e acertou a criança em cheio. Não houve choro nem palavras. Correu na direção do berço aturdida, mas já não havia mais nada, no lugar, só sombras e um pó negro sobre os lençóis que um dia tinham sido brancos, tinham a forma humana.
No bairro, foi comoção. Todos iam e vinham para ver o tal lugar onde tudo acontecera, e a polícia não conseguia explicar, e o meteorologista não conseguia explicar. E logo a mãe foi se convencendo que aquilo tudo era algo mais que uma tristeza, era sua missão, e que a filha devia ser santa para que Deus estivesse tão determinado a fazê-la sofrer.
Foi assim que se não encontrou paz, ao menos, encontrou sentido em meio ao acaso. Todo mês se sentava à mesa e escrevia outra carta endereçada ao Vaticano, decidida que o berço da criança devia ser lugar de peregrinação, e que a filha era santa, faltava-lhe tão somente o reconhecimento papal tão merecido. Milagres? Ela própria era um milagre, até exaurir-se.
E a cartomante que sabia tudo, que tinha visto nas cartas tal dor e sofrimento, nunca lhe disse a verdade. Que a mãe não estava louca, e a filha tinha de fato algo de místico correndo nas veias, daí que morreu cedo nos braços de um anjo com cabelos dourados e azuis. Não lhe disse, não achava que fizesse diferente, a verdade era só um acessório, a dor ia continuar lá. E a ausência também.
Laura Elizia Haubert é escritora, autora de “Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul” (Patuá, 2017) e “Memórias de uma vida pequena” (Quintal Edições, 2019).