Vivian Pizzinga
os cadernos das pessoas que usam cadernos. eu queria pegar os cadernos e ler os cadernos das pessoas que usam cadernos. todos os cadernos, todos eles. folheá-los, claro, mas antes dedilhá-los, antes ainda senti-los, e nisso tudo decifrá-los. sentir com as digitais o que há nessa cadeia de lâminas brancas e maleáveis, às vezes unidas por uma espiral, e que podem ser rasuradas, destacadas, amassadas, essas lâminas esguias que se desdobram em texto e garatuja.
minha vontade que acorda mais cedo que eu, que acena nos dedos das mãos antes mesmo que meus olhos se abram, é a de sentir o bojo dos cadernos das pessoas que usam cadernos, sentir seu ínterim através da textura plana das folhas e da capa, usar o tato na inquirição, arguir não só o que meus dedos apontam, como também e mais que tudo os traços sobre os quais meus olhos, nesse encontro, deslizam.
os cadernos das pessoas que usam cadernos abrigam frases desconexas, colagens descontentes, garranchos descabidos. todo caderno abriga a chance de uma leitura descontextualizada, o infortúnio de um mal-entendido. cadernos não deixam de ser um mau agouro em silêncio, basta obedecer ao ‘não perturbe’ e tudo ficará bem, basta seguir à risca o ‘não abra’, passar direto sem desviar o rumo da visão. um caderno descansando sobre a mesa é um convite ao silêncio, a regra fundamental desses objetos infinitos é a de que não devem ser incomodados. nunca.
os cadernos das pessoas que usam cadernos têm adesivos, embalagens de água em tempos de geosmina, bulas de antidepressivos atípicos, assuntos restantes, resquícios incrédulos de ontem. contêm mágoas, manobras e perdões adstringentes. contêm lantejoulas desavisadas, em geral azuis, contêm a margem esquerda de um choro adverso, contêm cartões de visita desatualizados, marcadores de livros de livrarias fechadas, anotações de endereços cujo CEP desconhecemos, e contêm, evidentemente, post-its em geral rosáceos.
os cadernos das pessoas que usam cadernos têm também a verdade dos fatos olhada a partir de um ponto de vista escrito com grafite 0.7 2B da faber castell ou tinta azul de caneta bic, rasuras contornos disfarces. têm entre 96 e 98 folhas quando vagabundos, podem ser pautados, podem ser compridos, podem ser brilhantes em suas capas e foscos em suas lâminas faciais mais íntimas, mesmo que não passem de um rascunho.
os cadernos das pessoas que usam cadernos, que escrevem e montam listas, eu os queria todos e com eles eu passaria horas, perderia a hora. nunca acabam, os cadernos. 96 ou 98 folhas se vagabundos, sketchbooks de desenhistas inglórios, diários de campo de etnógrafos perdidos, os cadernos das pessoas que usam cadernos são sempre um fio cujo final desconheço, cujo começo é o disfarce de uma descontinuidade perdida. os cadernos das pessoas que usam cadernos são sempre substituídos por outros. não abrigam um ponto final, não abrigam um turning point.
fato: há sempre uma vírgula discreta na última linha dos cadernos das pessoas que usam cadernos. mesmo que não passem de rascunho. mesmo que não contenham lantejoulas.
Vivian Pizzinga é escritora e psicanalista, autora de “A primavera entra pelos pés” (2015) e “Dias roucos e vontades absurdas” (2013).