Sabina Anzuategui
Brasília, 30 de outubro de 1996. Cheguei na cidade há três dias, de carona, novecentos quilômetros num Gol mil. Trouxe uma mochila com três camisetas, mais uma calça e uma saia, e a mesma sandália que está no meu pé desde Campinas. Passei as últimas noites dormindo sobre um edredom no chão, na sala de um carinha da faculdade que mal conheço. Tudo por amor ao cinema. Para acompanhar o Festival de Cinema Brasileiro. O esforço parece jogado no lixo na quarta à noite, depois de uma hora na fila de ingresso, quando, aos dez minutos de projeção na sala lotada, fica evidente que o filme é uma bosta. Meu único consolo é o ator principal, que reconheço de um programa de humor que passa às terças-feiras depois da novela. Ele tem uns quarenta anos e um sorrisinho deprimido que me derruba. Vejo seu rosto na tela e assovio alto. Na poltrona ao lado, meu amigo Jef ri. Entre meus colegas, é motivo de deboche esta minha fascinação com tipos decaídos. Me defendo e justifico: charme pra mim é tudo.
Enquanto prosseguem os noventa minutos intermináveis do filme, me afundo na cadeira e fico pensando na vida, tentando ignorar os diálogos óbvios. Em qualquer festival, os melhores filmes passam sexta e sábado, cinema brasileiro é assim, precisa ter paciência. Finalmente sobem os créditos finais, as portas se abrem para o pátio com barraquinhas de chopp e iguarias gordurosas, e na balbúrdia da saída Jef fala de uma festa num tal bar que alguém avisou que é ali por perto. Festa da equipe do filme. “Carioca sabe fazer festa”, Jef diz. “Aguentamos o filme então merecemos no mínimo um open bar.”
Caminhamos quarenta minutos, nada em Brasília é perto. Quando finalmente chegamos, a fachada retrô com luminoso em neon me deixa meio inútil de vergonha. Eu esperava um boteco, mas é quase uma boate. Não estou vestida pra isso e sequer temos convites. Me escoro no Jef, que sempre dá um jeito, e mal tenho tempo de processar meu constrangimento quando o tipo da porta nos deixa entrar. No banheiro lavo o rosto com água fria e passo umas toalhas de papel molhadas pra refrescar o corpo. Jef já se embrenhou num rolê com dois caras (ele sempre conhece alguém).
Estou ali meio deslocada, quase mal humorada, quando vejo o ator, meu fascínio decaído, solitário no balcão com uma latinha de água tônica diet. É estranho que esteja sozinho na festa do filme que ele mesmo estrelou, mas vai saber o que se passa na mente das pessoas, talvez seja um deslocado crônico assim como eu. Só investigando pra descobrir. Chego no balcão e pergunto:
“Essa cara de enterro é por causa do filme?” Ele responde:
“Entre outras coisas.”
Às vezes me acontece de ficar inspirada quando converso com desconhecidos. Me vêm umas tiradas, pareço muito mais brilhante do que sou normalmente. Peço uma Fanta laranja, comento que é uma versão mais segura de Hi-fi porque a vodka ali certeza que é ruim, a pose blasé acaba funcionando às avessas, porque ele ri e garante que não preciso de desculpas pra tomar minha Fanta em paz. Papo vem, papo vai, por enquanto é só uma conversa, nem nos encostamos. Ele se diverte e lá pelas tantas solta a deixa: “Você salvou minha noite”. “Se não houver nenhum impeditivo”, eu completo, “a noite ainda pode evoluir”.
Dessa frase passamos para a calçada à procura de um táxi. Ele não tenta disfarçar quando saímos juntos da boate. Na recepção do hotel, onde estão uns perdidos do Festival, ele não propõe nenhum estratagema para sermos discretos. Não pede que eu suba em um elevador separado, nem se assusta quando outra atriz aparece por acaso e me vê enrolada ao braço dele. (Sim, confesso que já estive em outros festivais, já frequentei outros hotéis e reconheço quando homens casados tentam evitar testemunhas). Entramos no quarto. Minha preferência por tipinhos deprimidos me deixa à vontade entre aquelas paredes acarpetadas, que deviam ter sido redecoradas há uma década. Já ele, apesar da minha espontaneidade e corpinho universitário, assume a expressão do personagem do filme, como se lembrasse de repente que o universo terá um fim. Tento amassar suas carnes branquelas e ele pede pra ficar de camisa: “Você não merece ver minha barriga”, diz.
Em certas noites do meu passado, testemunhei a expressão boquiaberta dos caras quando tirei minha roupa. Sentado na cama, de camisa e meias, ele parece o tipo que reagiria igual. Me afasto um passo pra ele enxergar melhor. Vou liberando peça por peça: a sandália, a saia, a calcinha, a camiseta. Ele não fica boquiaberto, mas tenta me puxar pela cintura, com um olhar meio pidonho. Me aproximo e o toco por cima da cueca. Na terceira carícia, a cueca fica toda melecada.
“Desculpa”, ele diz, meio engasgado. “Me dá uns minutinhos, eu consigo de novo”.
Deito nua ao lado dele por um tempo. Conto a história das quinze horas de viagem no Gol mil. Três dias almoçando cachorro quente, ele ri. Aproveito a descontração e começo a tocá-lo por baixo da cueca.
No primeiro toque está murcho. Envolvo entre os dedos com cuidado, como se enrolasse um brigadeiro meio mole. Noto um sinal de vida, prossigo no mesmo ritmo, com um gemidinho, pressiono, solto, pressiono, solto. Arrebito a bunda, que ele aperta com mão cheia. Está quase no ponto. Afrouxo a mão por um instante, ajeitando a posição para aproximar a boca. Quando meus lábios chegam, está murcho de novo. Um segundo de abandono, e ele já se retraiu.
Acredito ainda que, com a língua, tudo pode se recuperar. Lambo da base até a ponta. Tem algum volume, não muito, mas me dá esperança. Chupo a ponta, sugo, leve, sugo, sugo. Ele corre a mão pelas minhas costas. Depois retira. Murchou totalmente.
Não sei mais o que inventar. Ele faz um carinho nos meus cachos.
“Tá bom”, ele diz. “Valeu a tentativa.”
Sento de joelhos, olho em volta.
“Você é engraçado. Quer dizer, de verdade, não como ator”.
Deitado, ele relaxa: “Isso é um elogio?”
“É.”
Noto seu rosto voltar ao natural, quase contente.
“Deixa eu fazer alguma coisa pra você”, ele sugere. “O que você gosta mais?”
“Pra falar a verdade” — sou honesta — “já estou meio com sono.”
“Quer jantar?”
Respondo que não precisa, ele é paternal:
“Tem certeza? Cachorro quente não é comida de verdade.”
“Não sou muito de jantar.”
“Chamo um táxi? Pode ficar se preferir. Só às nove tenho uma sessão de imprensa.”
“Aceito o táxi. É cavalheiro da sua parte.”
Ele liga para a recepção. Pego minhas roupas no chão e me visto. Lembro de uma cena do filme: na banheira, depois de pintar a casa, ele esfrega a atriz com uma esponja. Ela se encaixa, e ele recita um poema sobre a morte. Brinco:
“Que merda aquela cena da banheira.”
“Vai ser um clássico do cinema nacional”, ele diz, enigmático, enquanto amarro as sandálias.
Pondero: “Taí uma verdade.”
Ao abrir a porta do quarto ele autoriza:
“Pode contar pra suas amigas o vexame que eu sou.”
“Fica tranquilo”, suavizo. “Vou só contar que você é gentil.”
Sabina Anzuategui é escritora, autora de “Uma mulher sem ambição” (DBA, 2021).