Cezar Tridapalli
Ainda por cima precisava votar, rever a cidade, as mesmas pessoas agora envelhecidas – existia envilecidas? – como espelho, eleições presidenciais pegando fogo, o país um circo beijando a lona, era palhaçada e era boxe, a mãezinha daquele jeito, ela daquele jeito, tudo daquele jeito, mas de que jeito seria se o jeito é esse, se não fosse esse aí sim seria de outro jeito, e buscar o pai na cidade e votar e enfrentar duas horas de ônibus, se conseguisse dormir na viagem, mas dormir era sonhar não um sonho bom, corvinhos girando como se pássaros amarelos em desenho animado brotassem depois de ela ter levado uma paulada na cabeça. Dormir, só com paulada na cabeça. Mas dali voariam corvinhos, que animada era o que ela não estava, era desenho de alma seca, deus vazou do entusiasmo, só asma e miasma agora, murcha de tudo, haja força de flor pra tanta náusea e ferro na alma. Pelo menos não há morte para os minerais. A rigor, existe rua que não seja sem saída?
– Você sabe que cientistas têm mais dúvidas que certezas? Mas depois que vêm as certezas, que maravilha.
– Se acham. Como se só eles tivessem mais dúvida que certeza. Vai dizer que você não tem mais hesitação que convicção? Duvido. Ó, meu duvido já é dúvida, dúvida da vida, que a gente acha que é dádiva, mas é dívida devida. Não entendo aonde você quer chegar.
– É que estou fazendo um experimento com minhocas e ainda não consegui entender por que elas cagam terra.
– Talvez porque elas comam terra?
– Quer dizer que você come merda?
Susto, sobrancelha levantada, esgares, hã.
– De certa forma, todos comemos. Pelos ouvidos, principalmente. Acabei de comer uma do coleguinha da quinta série aqui.
– Tenho senso de humor.
– Na tua terra chamam de humor? E de senso? Na minha época ríamos de piadas assim. Pelo menos me fez lembrar da piada e de quanto éramos adoravelmente idiotas. Mas rir disso adulto é só idiota mesmo, adorabilidade zero.
– Terra e época: espaço e tempo. Eu tenho o ahá da ciência e o haha do humor, entendeu?
– O que tem pra entender?
– O ahá é o eureca, o haha é a risada. Como o ahá, o haha também vem de uma descoberta, de uma surpresa.
– Ah.
– Olha. Ouviu? Além do ahá e do haha, dá pra pôr o ah. O ah podia ser o da arte. Ciência, humor e arte, ahá, haha e ah.
– Meu ah foi de desânimo, não de admiração. E a arte combina melhor com oh (ou puta que pariu, mas isso eu não disse). Você quer, tipo, dizer que isso que você fez é arte? Arte de piá pançudo, bem sem graça. Desculpe, não quis ofender. Piá pançudo é gíria na minha cidade, pra guri imaturo. E não vou me desculpar agora – disse, vendo os pelos da grande barriga dele pedindo liberdade pelos vãos da camisa mal abotoada. Flash difuso de uma infância, pelos e barriga escapando das roupas para prendê-la. Esfolaram sua pele, que depois ela trocou por esfoliaram sua pele, para diminuir a ferida, sabe? Palavra que machucava menos, levava embora células mortas. Até achar que tivesse esquecido.
Estavam no ônibus quando se reencontraram. Ela ali a contragosto, eleições depois de amanhã, era votar e buscar o pai, pançudo. Do piá ao pai. Duas facas na mesma garganta. E foi pedir licença porque ele já ocupava assento do corredor e ela precisava passar por ele e ficar na janela. Ele não se levantou, só encolheu um pouco as pernas e ela, digamos, não curtiu aproximar o baixo ventre do rosto de um estranho. Projetava nele um pensamento dela, depois pensou mas esse aí, coitado. A conversa de minhocas, sobre ciência, arte, humor não tinha sido a primeira coisa, tinha acontecido depois do você não é a? e do sim, nos conhecemos? e das lembranças da escola que ele mantinha frescas enquanto ela as mantinha fracas, sem ideia de que tudo aquilo havia passado pelo seu passado. Se ele estava falando, devia ser verdade? Que ele achava o máximo da coincidência, conspiração de astros, depois de tantos anos caírem lado a lado naquele trono de poltrona – foi a expressão que ele usou, cruzes. Ela achou apenas um azar. E ele veio com aquilo de que há pessoas que a gente não vê faz um tempão e depois que encontra permanece amiga desde sempre, que não teve lacuna nem hiato nem abismo de tempo remoto. Ela achou apenas um azar. E ele falou da vida, que trabalhava numa escola de crianças, fazendo experiências malucas – ah, aprendeu a da minhoca com os alunos, ahá, haha –, reagindo umas coisas com outras coisas e cuidando para que o laboratório não explodisse. Além disso, fazia uns lances aí, e você? Eu estou só com a parte de uns lances aí. Ela se surpreendeu de novo com a memória do como era mesmo o nome dele? com a memória de longo prazo – bastava acreditar que o que ele dizia era verdade – e com a memória de curto prazo, pois ele pegou uma expressão perdida na conversa e retomou com um você disse que na tua época você ria de piadas assim, então quer dizer que deve continuar rindo, a menos que eu esteja falando com um fantasma. Essa época de agora, com você aqui e viva, não é a tua época?
– Preferia que não fosse.
Ajeitou-se na poltrona, curvando o tronco para a janela, um lado da bunda enterrada no macio enquanto a outra ficava meio no ar. Achou-se pouco resguardada, que mulher precisa ter cada tipo de cuidado que vou te contar, viu? Isso ela pensou, não disse, imagina oferecer um papo desses pro doidinho da minhoca, o aro direito dos óculos grudado às hastes por uma fita adesiva. No caso do pai, acho que era no esquerdo.
Cuidar do corpo e das palavras. Reajeitou-se, agora menos torta, buscou uma mínima simetria, que ele viu como disposição para uma conversa, era daqueles que dizia entender os paranauês do corpo que fala e tal. E como ela se afastou da janela, isso significava se aproximar do trono da poltrona dele. Estava dando muito na cara, minha cara.
– Nossa época é como as outras: roubalheira e sem-vergonhice.
Ele nem acredita muito no que diz, estava entre conquistar um corpo e falar o que pensava, no meio só fio de silêncio que não deixaria nem uma coisa nem outra.
E, meu, que história era aquela de sem-vergonhice e roubalheira se ela estava pensando na mãe, no dia em que não aguentou mais, deu um tapa de ponta de dedos na nuca da velha e berrou: para com essa história, mãe, não aguento mais ver você derrubar uma colher e falar ó, quando cai colher, vai vir uma mulher, quando cai um garfo, vai vir um macho. Bateu mesmo, berrou mesmo, a mãe perdida nas obsessões, o mesmo balaio de frases prontas que não conseguiam mais se desenrodilhar e formular pensamento novo. Ela sabe que não conseguiam nem conseguiriam, as paradas neurológicas, o cérebro de circuito fechado, as sinapses ruas sem saída – a rigor, existia rua que não fosse sem saída? – eram culpa da mãe? Do cérebro da mãe? Dá para se safar de culpa colocando a culpa em braço e mão e nas cordas vocais por terem batido – foi tão leve, quase um carinho – e berrado com o cérebro da mãe, mãezinha, desculpa, não fui eu, foi meu braço e mão, foram minhas cordas vocais que fizeram isso e eu não gritei com a senhora, mas com seu cérebro.
Chorou, a mãe. Algum fio do circuito fechado se soltou, e no minissafanão – existe safaninho? – e no berro algo machucou que fez doer. Depois de recolher as lágrimas, a mãe: o teu pai disse que vinha aqui qualquer dia, vai ver a colher é isso. E dá-lhe erguer a colher, colocar na mesa, ajeitar a mãe na cadeira de rodas. Naquela noite, apareceu um macho que não era o pai – e era uma colher que tinha caído, mãe –, mas um ladrão que entrou, deu umas porradas na velha – aí com força mesmo – e levou a tv. De tubo ainda. O que mais impressionava era porque, naquele ônibus, ela contava tudo pra ele. Só queria encostar a cabeça no vidro, não pensar em nada – até parece – e chegar logo na casa do pai dizendo ahá, haha, ah, te encontrei, toma que a filha é tua, agora vai lá. A filha era a mãe dela, era ela, era quem?
– Eu falava da sem-vergonhice e da roubalheira dos políticos. Por culpa deles os vagabundos fazem maldades com velhas assim.
– Velhas assim? Essa senhora é minha mãe.
– Que você chamou de velha, em quem você bateu, com quem você gritou. É exclusividade dos filhos xingarem os pais?
– Pode xingar os teus à vontade, nunca faria coro ao teu solo.
– Isso não te livra da maldade.
Ele entendeu tudo – se era isso mesmo ele não sabe, mas entendeu tudo –, ela desabafava e queria palavras de consolo, até um consolo físico, uma deitadinha no peito, e vai que uma deslizada mais para baixo. A curva das coxas era parábola de encher os olhos, pena a blusa grossa, sem deixar ver mais contornos. Ela cruzou os braços, a ligeirinha. Dava tempo de ele recuar, oferecer palavras aquecidas, jogar o foco em ladrãozinho chinelão vagabundo que merece apodrecer, que é opinião de que ninguém discorda, ninguém, ninguém, ninguém. Não conseguia ver vetor de conciliação: ou mimetizava o compreensivo, os gestos das gentilezas, talvez premiados com alguma forma de sexo – o trono da poltrona em posição favorável no ônibus meio vazio – ou aproveitaria a quase estranha pra compartilhar as nojeiras – ele mesmo as chamava assim, ainda havia voz dentro dele que não era bem ele? – que ele deduziu ou induziu ou abduziu e ninguém tinha coragem de admitir. Taí uma chance de agarrar a mina falando o que penso. Há vetor.
– Eu não condeno você, sabia? Não condeno.
Agora eu julgada por uma coisa que fiz, mas que não era bem eu.
– Aprendemos os ditos bons modos, jeitinho de falar, agir na frente dos outros em troca de aceitação. Sempre submissão, percebe? Mas os bons modos não são nossos de verdade. Sozinhos ou diante de alguém indefeso, aí o nós verdadeiro aparece, que é bem diferente desse que envernizamos só pra mostrar pros outros que aprendemos com esses próprios outros que precisamos ser bonzinhos. Entendeu?
– Nem uma palavra.
– É atrás das etiquetas que te colaram que está você.
Ela não sentiu cheiro de álcool. Que falar assim generalizante, aprendemos, envernizamos, blablablamos era coisa de bêbado ou de chato, ou de bêbado e chato, ou de bêbado chato, chato bêbado (para com isso). Ele não queria que eu respondesse de verdade, né? Falar pra um caído de paraquedas naquele trono de poltrona de ônibus quase vazio.
– Eu já me arrependi.
E tinha mesmo se arrependido. Mas o que não disse é que mesmo arrependida tinha medo de voltar a agir daquele jeito.
– O problema é que, mesmo arrependida, eu tenho medo de voltar a agir daquele jeito – agora disse.
Falando com um bêbado de quinta série. Que pelo menos seja um daqueles que esquecem no dia seguinte.
– Quem é você? A arrependida ou a que volta a agredir?
– Sempre fui boa filha.
– Qual o problema de ser você? Você é boa pra quem? Pra você é que não.
– A maldade faz os outros sofrerem e eu também sofro.
– Você sentiu prazer no safanão e no grito. Na hora sentiu. Descarga de energia, como orgasmo. Só sofreu e se arrependeu depois, pelos outros, é por causa deles que você sofre. Aceitar a maldade, que nem maldade é, já elimina um dos sofrimentos aí. Pensa a birra de uma criança, ela esperneia porque quer alguma coisa. Se não sofrer depois tanta pressão pra ser boa, terá trinta anos com a mesma impulsividade, lutando com todas as formas e forças pra conseguir o que quer, sem freio. Freio faz sofrer. Fazer o que quer: isso inclui no teu caso até matar a mãe e trepar com o pai (arrepio de vértebras). Sem culpa, sem sofrimento.
– Esse monstro que você pinta encontraria outros seres querendo satisfazer as vontades também. Só vejo guerra e pancadaria.
– E quem venceria? O mais forte, o mais apto, o mais merecedor. A negociação só gera frustrados que precisam ser bonzinhos e abafar desejos reais, e isso só faz o impulso, que é sempre verdadeiro, ser esquecido ou, pior, virar desespero, desespero que a gente nem desconfia de onde vem. Pra evitar que todos fiquem doentes, os mais fortes devem eliminar os mais fracos. Os fracos não estariam aí pra sofrer, os fortes seriam e estariam satisfeitos.
– Então você defende o ladrão que roubou e bateu na minha mãe?
– Ele logo encontra um mais forte, leva tiro na cara e deu. Se achar cruel, juro, é só matar rápido, o morto nem vê nem sente nem sofre. Se não matar é pior, se proliferam, a natureza se corrompe, bem desse jeito como já está corrompida. Como mudar o mundo fazendo as mesmas coisas? Seja a mudança que você quer pro mundo.
– Tem gente fraca que é inteligente.
– Os verdadeiramente inteligentes vão buscar ser fortes e se armar. Inteligência é parada muito vaga, a força não, dá pra medir. Precisamos de critério. Acha a diversidade linda? Vêm os caras e pregam satanismo, comunismo, aí só a gente é que tem que deixar? Eles destroem tudo, o certo, o claro, claro. Os animais destroem os mais fracos que ameaçam ameaçá-los. Devoram para continuarem fortes. Sinal maior da vontade do Criador, precisa?
– Se satanistas e comunistas forem mais fortes, azar teu, segundo a teoria tua? (teoria, téos, telos, Teló, que ai, se eu te pego, ai).
– Aí é que é, é preciso ser mais forte que eles. Se a gente não elimina, como vai ser o futuro? É de eliminação de pragas que eu falo. Você pode achar desumano eliminar, estar ali matando com as próprias mãos, mas alguém precisa fazer isso pra que um futuro só de satisfeitos exista, isso é o humano, nada de desumano. Desumano é rótulo que te colam escondendo e apagando tuas vontades reais. Eliminar é palavra linda. Eliminar é vida, vida de verdade. Eliminar é recortar limite e limar, deixar a superfície lisa.
– Você fala em morte e valoriza a vida.
– Morte e vida, cara e coroa, uma moeda só. Valorizo a minha vida. Preciso me amar. Valorizam o altruísmo e condenam o egoísmo, tudo para o outro, nada para o eu. Quem pode ser feliz assim? É eliminar as pestes. Cada um que fique com seu paraíso.
– Um paraíso aqui e outro depois da morte?
– Se acreditarem que existe paraíso depois da morte, perdem o medo de morrer. Facilita as coisas. Homens-bomba morrem felizes, que legal morrer cheio de esperança! Um monte de mulher esperando.
– Eu, tipo, não gosto de mulher.
A mãe toda religiosa, só falava em quando descansar.
– Então se alguma cruzar teu caminho, já sabe.
– Eu quis dizer que não gosto sexualmente de mulher.
Ele, com espírito lógico-subjetivo, científico-personalizado, deduziu: não gosta sexualmente de mulher, então gosta sexualmente dele.
Daí ele diz que era um cara sem rumo na vida que agora se encontrou.
– Eu, uma mulher encontrada na vida que agora se perdeu.
Ela teve a rememoração que costuma ser comemoração: lembrou rápido da infância, padre, professor, pai sempre dizendo o que ela devia fazer (abre mais, abre mais tô dizendo). Agora que tinha as rédeas na mão: égua xucra que se escoiceava toda.
Ele nunca tinha colocado em palavras de voz alta o que dizia agora, como as coisas se encaixavam, irrefutáveis, uma verdade ganhando V maiúsculo, fio de raciocínio tecendo trama lisa, sem rasgos. Ah, haha, ahá.
– Você não tem rédea nenhuma na mão, a rédea está com as vozes de fora que entraram na tua cabeça (e as coisas que entraram no meu corpo?). O mal deveria ser banal. Ou mudar de nome. Da aura de coisa ruim é difícil desgrudar. Eu me libertei. Mal e morte, modos de preservar a vida de quem merece mais, o resto é fumaça. Pra existir humanidade precisa morrer o humano.
– Você me deve uma boneca e um esquilo da Mongólia.
Deter memória é forma de poder. Alguma porta de quarto escuro se abriu e se projetou de lá a boneca esquartejada e Bolinho, morto depois de ter três bombinhas enfiadas uma em cada orelha, a outra no rabo. Junto do bichinho e da boneca, um desenho de figura meio humana, meio animal, sem rosto, pernas e pés-patas descolados do corpo. Quando voltou à tona, só disse:
– Você está sugerindo que eu devia fazer o quê com minha mãe?
Ele se debruçou na direção dela mais do que a curva fechada lá fora exigiria.
– Se render uma herança e ela não sofrer, quem sai perdendo? Só se tuas capas de culpa continuarem te prendendo com as vozes de dentro da tua cabeça que entraram e você deixou, todos deixam, somos pequenos demais no começo de tudo. Hora do exorcismo, arranca isso. A culpa é a pior das punições, voz dos outros que te culparam, ocultaram, ocuparam. Tenho vozes aqui, ouve?, estão hoje bem domesticadas, às tuas ordens, elas me dizem.
O hálito quente dele chegava pelo calor na bochecha, ela trancava a respiração.
– Por acaso você fica chocada que a Guerra de Troia matou muita gente? Não. Que as Cruzadas mataram? Não. Tua mãe só é uma pessoa, você fica abalada porque ela é próxima, mas isso não tem nada a ver. Meu dedo, olha aqui, visto assim de perto, parece maior do que as árvores lá fora, mas é menor. Bem menor. Força e coragem de se desvencilhar, só isso pra deixar de ser encilhada pela égua xucra que domina e escoiceia. Se se deixar domar, será uma fraca (faca, na garganta) e os fracos, já viu. Nada do que digo tira a nossa humanidade. Ao contrário, alforria o humano verdadeiro. Vê como sou humano: quer poesia, eu faço: “quero ser como os pássaros / livre / para cagar nas cabeças / dessas batatas / que se esparramam pelo chão”.
Só barulho de pneus e motor. O resto virou silêncio. A frequência dos olhos dela piscando é que foi maior, mas estava no escuro, ninguém – ninguém – percebeu. Ele não a olhava mais, curtia gozo dentro de si, pela primeira vez ele próprio, olhos curtos que não chegavam ao nariz. A voz saiu do vazio para o vazio, em tom de prece vagarosa.
– O primado da força e o ocaso da lei, da lei legal, a dos olhos vistos, a que os olhos leem, mas principalmente da lei talhada dentro, que não precisa mais de enunciação ou escritura, que saltou do mundo de fora pra ser gravada no interior. A obrigação de amar tem nos levado aonde?
Que intimidar ajudava, mas não resolvia.
No escuro, o ônibus chacoalhando, a voz não saía de uma boca precisa, sacolejava junto, deslocava-se descolando-se de todas as bocas para todos os ouvidos, uma sociedade de fortes e merecedores ecoava e escrevia legenda para a imagem além da tela da janela, agora iluminada por luzes de cidade lá fora, pedintes de corpos rasgados costurados por cobertores, essa gente agarrada à vida como o cão a um osso seco. Ela iluminada e escurecida, os intervalos entre um poste e outro a anoitecer a sua noite para de novo picos de luz abrirem seus buraquinhos na escuridão. A luz sempre a empurrar a sombra para trás das hastes e das hostes que a enfrentam.
Preferia não fazer.
Preferiria não fazer, ela pensou.
– Prefiro não fazer, ela disse.
Ele não entendeu. Também sequer ouviu. Talvez nem estivesse ali.
Cezar Tridapalli é escritor e tradutor, autor de “Vertigem do chão” (Moinhos, 2019).