Nathallia Protazio
Não consegui disfarçar minha primeira lágrima dos dezesseis anos. Baixei a cabeça e aproveitei o silêncio raro. Olhava fixamente minhas mãos abertas à frente do corpo. Grandes, fortes e marcadas pelo trabalho. Quase desproporcionais. Mãe tinha ficado parada na posição em que estava, como quem bebe café quente e sai no sereno apressada. Será que ainda lembro de minhas mãos pequenas? Algum dia minhas mãos tinham sido pequenas? Escutei a zuada do pai e dos outros chegando. O bater de botas no alpendre e o tilintar das enxadas sendo escoradas na parede do fundo. Alguém grunhiu alguma coisa e um outro respondeu com um escarro. Desviei meus olhos de minhas mãos e os levantei pedintes aos de mãe. Ela só conseguiu reagir com um suspiro e uma olhadela pra porta por onde o barulho invadia o ambiente. Foi o último aniversário que passei em sua companhia.
– Vem cá, qual é a ligação entre Jeremias e Gilberto?
– …
– Fiquei sabendo que nem tem o mesmo sobrenome, tá ligado.
– …
– Ô, novidade!
– …
O pior numa cidade grande não é a quantidade de gente, a quantidade de carro, a quantidade de barulho. O pior não é o ódio que se tem da bênção que era uma chuva quando a gente morava na roça. O pior não é o calor. Aquele calor que alguma alma penitente tenta amenizar com um ventilador desanimado. Não. O pior não era eu ter de me levantar cedo em pleno sábado para participar de uma reunião inútil de condomínio de um edifício que nem sabe quem eu sou. Não. Com certeza, não. O pior era escutar uma conversa pela metade, escutar só um cara porque o outro falava tão baixo que eu não conseguia ouvir o que ele dizia. Isso é que mata o cidadão: a curiosidade mal-aplacada.
Vim parar aqui por sorte, aquela velha história da gente que sai do interior onde nasceu pra vir trabalhar na cidade grande. Saí de casa pelo desejo de uma vida melhor, esta enorme vontade de ver o mundo. Fiz dezesseis anos com as mãos que não queria. No dia do meu aniversário mãe fez um bolo de trigo com cobertura e calda de ameixa. Ela achava especial tudo que se comprava dentro de uma lata, disse que meu bolo tinha que ser bonito. Fez cobertura de glacê e calda de ameixa enlatada – eu nunca tinha visto ameixa fora de uma lata até chegar em São Paulo. Sentei na mesa pra tomar um café, o sol já esfriava atrás dos sítios vizinhos, e mãe me olhava orgulhosa por detrás do seu trabalho.
– O que é que tu tem, menino, não tá feliz?
– Tô, mãe.
– Não gostasse do bolo não, foi?
– Gostei.
– E essa cara amuada?
A gente chega na cidade se achando especial. Desce na rodoviária com ares de único, como se ninguém nunca antes houvesse cortado a geografia do mundo com gana de vida. Logo logo a pessoa se esmorece percebendo que na cidade tem de tudo menos gente da cidade. Conheci conterrâneo, alagoano, sergipano, baiano, maranhense, roraimense, até uma família de Mossoró, mas nunca conheci um paulista filho de paulista com avós paulistas. Parece que o povo nasceu todo no sertão, se criando do barro ou do Diabo, que dessas coisas eu não entendo, e foi fazendo filho, fazendo filho, e quando já tinha gente que só, começaram a se espalhar. Tudo quanto é paulista, por mais branquinho que seja, por mais granfino que se pareça, tem um pezinho saído de algum interior. É do Mato Grosso, é do Goiás, da Paraíba, olhe, seja de Minas que for, que é aqui pertinho, nunca conheci um paulista filho de paulista com avô paulista.
Jeremias era o único que me olhava, além de mãe. Meus irmãos não me olhavam porque eu não ia pro roçado com eles. Eu era diferente. Pai não me olhava porque eu cheguei tarde demais, ele já tinha gasto todas as palavras que conhecia. O filho mais velho, o mais forte, o mais rápido, o mais esperto, até o filho mais idiota já estava lá. Para mim só sobrou ser o mais moço, pois este título não havia mais maneira de me roubarem. Nasci no sofrimento da quase morte de mãe e sequei seu ventre quando saiu tudo junto. Matei o sonho de pai de entrar numa igreja levando uma cria mulher perante Deus. Jeremias era diferente também. Desde pequeno ele me ensinava sobre o mundo, aquilo que mãe não tinha tempo, nem pai paciência. Jeremias era o único que me entendia.
O pior mesmo não é ter levantado cedo justo hoje, que é sábado. Acho que o pior mesmo é o café. Hoje é sábado, amanhã é domingo, posso dormir até a hora que bem entender, ninguém pra me azucrinar o juízo. Ficarei na cama e pronto. Agora o café daqui, pelo Diabo, o café é ruim todo dia. Todo santo dia esse café com gosto de borra. O pior mesmo é a pessoa sair do interior onde nasceu. Era muita gente dentro de casa? Era. O trabalho era muito e o ganho pouco? Com toda certeza. Mas o que se comia e se bebia era de primeira qualidade. Café é sagrado e aqui na cidade é horrível. O café, o leite, o pão, a manteiga. O pior mesmo é a pessoa aos dezesseis anos se achar muito dona de si, dona da razão, especial até e dizer que vai embora pra cidade, trabalhar igual gente, que roça é coisa de ignorante, que a mão da gente vira mão de bicho, que o corpo da gente vira corpo de bicho, só o peito da gente escapa, porque peito de bicho canta, fraqueja, pia, gorjeia, e o peito da gente na roça tem que virar pedra pra aguentar o sol no lombo e a falta de água.
Pai gastou a vida me lamentando eu não nascer filha mulher. A tentativa penosa de mãe de me compensar a culpa que os outros olhares me cobriam a existência. A culpa de ter nascido errado. Eu devia ter uns seis anos a primeira vez que me lembro. Eu estava detrás da casa de farinha brincando com uma espiga de milho. Uma boneca de cabelos loiros. Ah! Como eu queria aqueles cabelos em mim. Jeremias chegou de mansinho pra me assustar e foi ele quem levou o assombro.
– O que é que tu tás fazendo, Bertinho?
– Eu tô brincando.
– Isso eu tô bem vendo, mas tu tás brincando de quê?
– Eu tô penteando o cabelo da minha amiga.
– Gilberto, escute uma coisa, esse vai ser nosso segredo, visse? Não tem problema nenhum tu brincares de boneca, mas ninguém pode saber. Promete?
– Segredo? O que é um segredo?
E a partir daquele dia não tinha acontecimento que não virasse segredo detrás da casa de farinha.
A minha enxada não tinha sido feita pra mim. Foi herança. Ficou comigo depois que Jeremias foi pra cidade. Antes eu ficava em casa ajudando mãe. Filho mais moço em casa que não tem uma cria mulher dá nisso, como sempre pai dizia, fui um menino poupado. Meus irmãos começaram na lida ainda crianças. Jeremias partiu pra cidade, eu já tinha força pro trabalho do solo há anos. A serviço de mãe eu carregava água, limpava as plantas, buscava lenha nas juremas, cortava as palmas pro gado, arrumava as sacas de feijão, de milho e de farinha. Trabalho doméstico de sítio é pesado. Jeremias bem sabia disso. Vivia me ajudando e me dizia como podíamos ter uma vida diferente. Foi embora assim que fez dezoito. Disse que voltava pra me buscar quando eu também fosse de maior. Ele nunca foi mesmo daqui, sempre olhando pra longe, um lugar que eu não enxergava, mas queria conhecer.
– Ouvi dizer que estão reformando tudo pra depois se casarem. Esse povo vem pra cá porque se ficam lá na terra deles a própria família mata.
– …
– Mano, acho que eles são da Bahia, tá ligado. No final é tudo baiano mesmo.
– …
Essa peste de reunião inútil. O café ruim, o calor do inferno, a vida seca de capital. O ódio da chuva que estraga o trânsito, os semáforos, as caras das pessoas dentro do ônibus lotado. Todo mundo suado procurando um pedaço de vidro de janela desembaçado pra aguçar a curiosidade de mundo lá fora de segunda a sexta. Esta vontade de vida, de conhecer a vida e viver, matando as gentes de segunda a sexta. De segunda a sexta. Levantei cedo, pleno sábado e eu aqui nesta reunião inútil de condomínio, um prédio que nem sabe meu nome, nem me conhece, nem sabe quem eu sou. Mas amanhã é domingo, amanhã eu descanso. Ficarei na cama e pronto, que domingo é domingo e a gente também é filho de Deus.
Minha desgraça aquele dia foi acordar cedo demais. Nunca tinha levantado antes de pai. Não sei qual Demônio me soprou e eu fui pro roçado antes de todo mundo. Mãe estava passando o café sonolenta com os olhos ainda virgens da luz do dia e se assombrou.
– O que foi, menino, que te tirou os sonos?
– Não tenho muita certeza, não.
– É teu aniversário que tá te preocupando? Dezesseis anos é muita responsabilidade, meu filho.
– Ainda não posso dizer, mãe, mas tenho pra mim que até o final do dia a senhora e eu saberemos.
Minha desgraça foi levantar cedo e trabalhar depressa demais. Passei o dia com raiva e se tem uma coisa que faz a pessoa adiantar o trabalho é a raiva. O que alimenta o povo da cidade não é outra coisa senão o ódio fazendo brotar o grão, e aquele dia a raiva era tanta que não me cabia mais. Machuquei as mãos no cabo da enxada e voltei cedo demais. Mãe ainda tava fazendo a calda do bolo. Bolo de trigo com glacê e calda de ameixa. Ela não tinha dinheiro pra um presente, mas pedindo pra Jeremias, ele se encarregava de mandar qualquer coisa. Uma lata de ameixa em caldas chegou por Seu Agenor. Esse era o prazer que mãe podia nos dar no aniversário: um bolo. A vida doce uma vez por ano. Cheguei cedo, me banhei e sentei à mesa. Peguei uma xícara de café passado. Então o peso dos meus dezesseis anos me curvou o corpo e eu olhei minhas mãos. Grandes, fortes. Meus dedos grossos e adultos, de unhas curtas no toco e manchadas com a cor da nossa terra. Mãos limpas. Não eram mais as mãos de um menino, apesar de Jeremias ter dito que me esperava. Com certeza não eram mais as mãos de quem espera.
Nathallia Protazio é escritora, autora de “Pela hora da morte” (Jandaíra, 2022).