Maria José Silveira
Amarrada com um pano de prato na mangueira do quintal, Ada se retorce no afã de se libertar e matar todos eles, Estevão e seu bando de amigos selvagens, os facínoras que planejam queimá-la. Quem vem salvá-la, esbaforido, é André, um magricela que Ada despreza porque… porque… ah, por qualquer coisa… vai saber.
Querendo vingança, ela chama a vizinha de trás:
— Vamos catar mamona pra jogar nos meninos?
E a batalha campal chega ao fim com Ada se se retirando aos prantos (que novidade!) e deixando sozinha a amiga cuja única saída, a essa altura, é também debandar em retirada. Se André vier atrás, Ada, furiosa, jogará nele todas as mamonas que restam em sua mão.
As casas da rua de Ada, distantes umas das outras, cercadas pelo mato de um cerrado raquítico e ar constantemente avermelhado pelo levantar seco da poeira, ficam fora do miolo central da cidade, entre os bairros que começavam a se povoar. A sua é uma casa com gramado e jardim típico anos 50, alpendre de lajotinhas de cores marrom e amarela, grande quintal.
A cidade é ainda pequena, embora já tenha seu traçado moderno de capital: largas avenidas saindo como galhos da então enorme Praça Cívica, a praça do Palácio das Esmeraldas, ruas transversais se abrindo indefinidamente. Nos meses de abril a junho, flamboyants floridos dão às avenidas uma sossegada beleza cor de rosa, alaranjada, vermelha, e jatobás e ingás caem nas calçadas. São muitas as ruas de terra e de poeira, sob o calor das tardes quentes e das noites claras do cerrado.
Mais tarde, tarefas feitas, Ada pula o muro da vizinha.
Vai brincar de casinha com os móveis pequeninos que a amiga confecciona com caixinhas de fósforos. Camas e mesinhas, cadeiras e sofás perfeitos, formados com caixinhas forradas com retalhos e coladas umas às outras. Sua admiração por essa habilidade da amiga não tem limites. E pelos cintos e enfeites confeccionados com o papel de maços de cigarro que sua parte na brincadeira é catar por onde desse. Aproveitava e cheirava. Gostava daquele cheiro rançoso de tabaco misturado ao cheiro úmido das mãos de um homem.
Ada arruma sua cama. Estevão arruma a dele.
Ada bota a mesa do almoço, Estevão a do jantar.
Ada lava as lajotas do alpendre uma semana, Estevão lava na outra.
Juntos, sobem nas árvores, trepam nos muros, jogam finca.
Escondidos da mãe, os dois, com os amigos da rua – todos magrelos, todos moleques – saem pelas ruas da vizinhança, em busca do proibido, da transgressão às pequenas regras: andar nas enxurradas, entrar nas casas vizinhas de portas destrancada para roubar doces na despensa ou na geladeira. As palpitantes crianças tiram as tampas das latas atrás de doces e enfiam os dedos nos pudins perfeitos. Nas ruas, com giz colorido ou pedaços de carvão, escrevem nos muros brancos: cu, buceta, pinto. Riem a mais não poder; e voltam a morrer de rir sempre que veem os palavrões estampados nos muros.
São hilariantes para si mesmos.
Mãe sábia, a deles. A infância toda deixando Ada ser tão moleque quanto o irmão.
E eis que, do nada, naquela casa tranquila, aparece uma americana. Houve quem a chamasse de governanta, mas o papel era bem menos abrangente: ensinar inglês à família, sobretudo às duas crianças. Alta e troncuda, brancona e sem graça, Miss Nancy usa vestidos de cores neutras, mangas cobrindo os braços cor de leite, golas abotoadas no pescoço apesar do calor, grossas tranças presas no coque firme. Tão séria em seu papel que seu how are you soa como repreensão.
Miss Nancy senta-se à mesa do almoço e do jantar, falando coisas incompreensíveis para duas crianças desinteressadas, uma distraída mãe preocupada com outros assuntos, um pai que exemplarmente se esforça para entabular conversas em inglês, e o Tio Joca, irmão do pai, que terminava seus estudos na capital, e cujo lugar à mesa fica ao lado da professora.
Do alto de seu corpanzil que lhes parece extraordinário, a americana olha para tudo com desdém. Pergunta com nojo, a respeito de qualquer coisa, em um português mais escasso que o inglês das crianças: “Ser cuistiume?”
Miss Nancy ocupou o quarto da casa onde antes dormia Tio Joca, mandado para o barracão dos fundos. Talvez por isso, por ter sido desalojado do quarto, ou pelos brios patrióticos da sua juventude, ele decide ter como sua preocupação particular ensinar a Miss Nancy os modos brasileiros. Sempre que está por perto, faz questão de ser a pessoa a lhe oferecer a bandeja com o copo d’água, limonada ou cafezinho, ao qual acrescenta uma pitadinha de sal para dar mais sabor aos “cuistiumes”.
Se adultos não estão presentes, o lanche é a hora privilegiada de suas lições. Com delicadeza jamais vista antes, o tio faz uma pasta com as formiguinhas que se acumulam no pires de mel cuidadosamente deixado em lugares propícios, e a passa no pão junto com a manteiga, sob o olhar inquieto da Miss Estranja, como ele a chama.
— Ser cuistiume? – é a voz dela, trêmula de nojo.
— Sim, ser cuistiume – balançam as cabecinhas cúmplices das duas crianças, engasgando o riso.
Nos dias de maior capricho, à pasta de formiguinhas, ele junta a casca de uma barata, o ferrão de um besouro, a patinha de uma lagartixa que as crianças têm grande prazer em juntar. E nem precisa se dar ao trabalho de fingir que comeria o patê cuidadosamente preparado: antes de fazer o gesto de quem vai pôr o delicioso pão na boca, a Miss Estranja já havia pedido uma agoniada licença para sair da mesa.
Suas roupas são outro objeto constante de lições. Com a cumplicidade da passadeira, o estudioso rapaz revela um desconhecido talento ao arrumar meticulosamente as peças de roupas americanas em dobras tão habilidosas que, para espanto das crianças e provavelmente dele mesmo, transforma um desenxabido vestido em margarida, um insosso lencinho em bombom duro de goma. E lá vão os dois irmãos, prestativos, balançando cabecinhas circunspectas, entregar à Miss Estranja roupas artisticamente passadas, engomadas e dobradas.
No seu afã pedagógico, uma tarde ele sobe no telhado para espiar o banho da Miss, certamente à procura de alguma mitificada diferença básica entre as culturas. Ao sair com o roupão rosa acolchoado abotoado até a garganta, batendo a porta do banheiro e gritando afogueadas palavras cujo significado nem de longe era possível suspeitar, Miss Nancy dessa vez não pergunta se é “cuistiume”.
À noite, é um jovem totalmente desencantado com a promissora carreira de professor de diferenças culturais que sai do escritório do enfurecido dono da casa. E nunca mais houve lições.
O que, para Ada, pode ter sido uma perda. A inquietude do Tio Joca quanto à diversidade física e cultural foi a primeira informação que ela teve de que espreitar alguém no banheiro poderia ter alguma graça. Em um tempo sem televisão e com escassez na oferta de filmes e revistas, não era algo assim tão raro.
E quando, uma tarde, ela vê sua mãe entrar no banheiro rumo ao banho, por um impulso cujo leit-motiv jamais conseguiria explicar, pôs-se junto à porta e olhou pelo buraco da fechadura.
Dentro da banheira, a mãe se ensaboa, entregue a si mesma. Era a mesma e ao mesmo tempo outra: era um corpo, uma pele, uma harmonia não pressentida de formas oferecidas aos seus olhos pelo simples fato de se colocar ali e atrever a olhar. Aturdida pelo tamanho da ousadia e pelo encantamento da cena (depois tão banalizada) não escuta o pai chegando em casa, até sentir sua orelha brutalmente puxada e o som descontrolado da sua raiva.
A mãe abre a porta do banheiro, embrulhada no quimono, alertada pelos gritos. “Viu o que essa pirralha estava fazendo?”, grita o pai, quase arrancando uma orelha infantil. Tranquila, a mãe serena a tormenta: “Deixa a menina. É travessura de criança. Não vai acontecer mais”.
Seguindo o ritmo natural da vida, mais crianças vão se aproximando, os primos vão crescendo, as brincadeiras mudando. Agora, com seus oito, dez anos, Ada e Estevão brincam em grupos separados de meninos e meninas. Quando se juntam, é para brincadeiras perigosas. Não verdadeiramente perigosas. Subir nas caixas-d’água, por exemplo. Havia boatos de que é fácil morrer assim, ou se afogando dentro da caixa, ou caindo do alto da escada, mas eles são espertos, não são? Imunes a desgraças, não são? Arranham-se, caem, pequenos machucados sangram as cabeças, mas nada de muito ruim aconteceria, aconteceria?
Estevão e André são os portadores dessas propostas. Procuram a presença das meninas nas brincadeiras mais ousadas. Não pela companhia, mas pelo prazer de seus olhares. Sem seus admirados testemunhos, risos e gritinhos, desafiar o perigo parece não ter metade da graça.
André ronda Ada. Se ela sobe, ele vai para o pé da escada e olha para cima. As meninas gritam: “André tá olhando sua calcinha, Ada!” E seus gritos de “Sai daí!” ecoam aflitos enquanto ela junta a saia às pernas, perigando cair da escada estreita e vertical. Desce furiosa para correr atrás dele, que já está longe. Mas esse tipo de raiva é passageira. Olhar calcinhas é parte do jogo que mal começa a ser jogado.
A verdade é que Ada não gosta de subir naquela escada. E não está interessada em provar nada aos meninos. Algumas fragilidades suas já lhe parecem óbvias. Não há como competir com Estevão e seus amigos no terreno da força e do preparo físico como nas corridas, finca e bolinha de gude. Acha um entojo as coleções de bolinhas de gude que o irmão faz como se fosse um tesouro. Prefere jogar pedrinha com as amigas, o que jamais interessou a nenhum dos meninos. E se é verdade que eles já sabem de coisas que elas não sabem, como os assuntos das chamadas mulheres mal faladas ou o que acontece em alguns lugares à noite, isso não lhe traz nenhuma sensação de inferioridade; em muitas outras coisas, como trepar em árvores, jogar amarelinha e pique de esconder, as meninas são melhores. E também sabem de muitas coisas que os meninos não sabem: não é deles o monopólio dos segredos desvendados.
Através de Estevão, Ada conhece os pontos fracos e pontos fortes deles, assim como conhece os seus. Meninos são melhores em algumas coisas, meninas em outras: se equivalem. Isso é algo que ela vê e sente, sem que ninguém lhe tenha dito. E percebe, sem clareza, que muitas das meninas não são assim. Criadas de maneira diferente dos irmãos, tentar se equiparar aos meninos sequer passa por suas cabeças. Estão ali para olhar e aplaudir. E olham e aplaudem. Ou acham a brincadeira enjoada, e vão embora. Ou as que sobem acabam ficando para trás. Desistem da competição.
Quando os meninos sobem nos telhados para espiá-las pelos basculantes tomando banho, elas gritam, se enrolam nas toalhas e vão contar para as respectivas mães. Ada dá seus gritos mas não vai contar pra ninguém. Convence Adele, uma das primas, a se vingar, subindo nos telhados com a mesma intenção. Mas essa é a brincadeira mais arriscada e a mais inexplicável a seus próprios olhos, pois nenhuma das duas, jamais, tem coragem de olhar de fato um menino no banheiro, ou porque já tinham visto os irmãos pelados quando mais novos e sabiam como era, ou porque, no caso de Ada, sua orelha guardara a lição. Era como se escolhessem exatamente os momentos que sabiam que o banheiro estaria vazio. Assim, tinham o prazer de achar que faziam algo que não deveriam fazer, mas sem a culpa de tê-lo feito realmente.
Só a excitação do risco os leva – os meninos e as poucas meninas que topavam ir com eles – a essas brincadeiras transgressoras? Talvez não. Tampouco qualquer atração mais perversa. O interesse parece estar em descobrir que no proibido não há nada que mereça ser proibido. Nenhuma consequência é de fato importante, nem grave. Enfiar o dedo no pudim de Dona Tarsila não matava ninguém. Escrever buceta no muro branco da rua tampouco. Subir no telhado para ver o que não viam, menos ainda. Essa constatação funciona como uma escada que os leva para outro degrau, um novo desmascaramento de um mundo cheio de regras desnecessárias. O que os faz perceber que seria possível abrir horizontes que, de outra forma, poderiam ficar para sempre fechados.
E há outras brincadeiras. Que só acontecem quando todos resolvem brincar juntos e, com o passar do tempo, vão se tornando mais interessantes. Como quando, à noite, se reúnem para brincar de quarto-escuro. Pegar uma menina no escuro e apalpá-la para adivinhar quem era – com a demora do menino para adivinhar, a própria presa acabava gritando o nome (ou não, quem poderia saber?) – faz do quarto escuro um lugar concorrido. Para desassossego das mães, que não veem essa brincadeira com bons olhos. Brincar de pique lhes parece mais apropriado. E quando um menino mais criativo resolve inovar a maneira de pegar uma menina, agarrando-a com uma mão por baixo, por entre as pernas, e a outra por cima, pelo tronco (ainda não tinham seios), os saudáveis gritos femininos que então se ouvem não despertam nenhuma estranheza nas mães zelosas, entretidas em seus assuntos.
É mesmo em um mundo à parte que as mães parecem viver. O espaço habitado por elas é o dos adultos, bem separado do espaço das crianças. O contato com os filhos, quase sempre, é o da imposição da ordem e dos limites. Sabe-se que as coisas andam, a comida aparece na mesa, as casas são arrumadas, a perfeita continuidade dos dias existe por causa delas. Mas como fazem isso, não interessa às crianças; inclusive porque não há falhas nessa ordem natural das coisas.
E como são bonitas as mães! Como é bom vê-las vestidas para a missa de domingo, conversando com amigas, ou de braço dado com maridos imersos em importantes pensamentos. A mãe com seu vestido de festa é a visão mais perfeita de beleza que os olhos das meninas podiam ver.
Quanto aos pais, salvo os acontecimentos excepcionais, só existem ao chegarem para o jantar. Encarnam a autoridade e a segurança, mas não se sabe, e tampouco interessa saber, em que exatamente trabalham. São coisas que pertencem a uma vida que não lhes diz respeito.
Há um mundo adulto do qual quase nada é dito aos filhos, e quase tudo que no futuro será o deles, naquele preciso momento lhes é alheio. Como se habitassem em duas esferas que giram em eixos diferentes e se tocam apenas em determinados momentos do cotidiano, entre os cuidados domésticos, a instrução formal, e as permissões.
Aos domingos, meninas e meninos vão à matinê. Saia plissada branca e conjuntinho de banlon vermelho, meias soquetes dentro dos sapatos pretos, Ada é a contradição em pessoa. Sente-se bonita, de roupa nova, mas morre de vergonha por ser ainda obrigada a usar meia soquete, marca das crianças mais novas. A primeira coisa a ser feita, ao virar a esquina da rua, é tirar as meias e colocá-las na bolsinha junto com o dinheiro para o ingresso e a pipoca.
Nos cinemas, todos veem os beijos na boca (ainda castos), as danças, os olhares, os abraços. Acompanham os ciúmes e as intrigas. Mas não têm elementos nem ousam imaginar o que mais há para saber.
É que no mundo real, não há sexo. Não frente aos olhos das crianças. O máximo que os filhos veem é o contato dos braços dados dos pais em um passeio. O que pode ser mais visível são as discussões e comentários ferinos entre os casais – a irritação é menos controlável do que o amor.
Assim, sem que nada seja visto, nem explicado, nem dito, as meninas convivem com mistérios incompreensíveis, e vão erguendo como podem os véus da vida que começam a aparecer. Se têm sorte, se conseguem unir curiosidade e coragem, descobrem as coisas mais ou menos na hora certa.
A educação sexual e sentimental é dada pela própria vida, ou não é.
Um das pequenas sortes que Ada tem é conhecer a filha da sua professora de piano. Moram no mesmo bairro, mas não na mesma rua, e costumam passar por um atalho em um terreno baldio para chegar uma na casa da outra.
— Você já viu pinto de homem? – pergunta a amiga.
— Claro. O pinto do meu irmão.
— Não vale, é pinto de menino. Pinto de homem é diferente, boba.
— Diferente como? Você já viu?
— Vi. É desse tamanho assim ó (e faz um gesto de pescador mostrando o tamanho do peixe). E é todo peludo.
— Jura?
— Juro.
— Mas onde você viu?
— No atalho. Tem um homem que fica lá mostrando o pinto quando a gente passa.
— Ah, eu também quero ver. Me mostra? – chama Ada.
Vão, mas não veem ninguém. Nem naquele dia nem nunca. Ada fica louca para viver uma história assim, se igualar à amiga, mas nunca tem a sorte de passar pelo atalho na hora que o homem está lá mostrando o que não deveria mostrar.
A filha da professora de piano parece ter essa sorte o tempo todo. Não que ela seja diferente das outras amigas, mas tem algo nela que, sim, é mais do que as outras têm. E não por ser mais desenvolvida fisicamente, mais corpulenta; é outra coisa. Suas histórias são ouro puro. Se não fosse seu jeito condescendente, como se estivesse tratando com meninas tolas, Ada seria mais sua amiga. Mas não é.
Ela lhe conta que já brincou de médico, e explica como é. Tem que ser uma menina e um menino, e a menina tem que tirar a roupa e abaixar a calcinha pra ser examinada.
— E o que mais?
— Nada. O médico passa a mão na gente, pega aqui (mostra os mamilos porque seios nenhuma tinha), e depois pega aqui embaixo.
— Na pepita?
— É. Pra examinar.
— O que ele faz?
— Nada, boba. Pega e pronto. É isso que médico faz. Pode abrir também e ver como é.
— Abre a pepita? – Ada achava difícil entender a graça daquilo; parecia esquisito demais.
— Mas você é boba, hein? Como vai examinar se não abrir?
—Você deixa?
— Deixo, boba, o que que tem?
Nem ela nem suas outras amigas brincam de médico. Nem veem pinto de homem na rua, nem dão beijo na boca. Os namoradinhos da infância sequer se aproximam muito. Olhares de longe é tudo o que acontece. Nem recados nem bilhetinhos, nem coraçõezinhos trespassados deixados nas carteiras.
Nem pra isso o chato do André serve. Tudo o que ele faz é ficar olhando. Ele, sim, é que é bobo demais. Não sabe nada. E se soubesse não ia adiantar. Ela jamais iria beijá-lo na boca e muito menos querer ver seu pinto.
Houve também a tarde calorenta quando uma prima mais velha, entediada e procurando se divertir, lhe revela o pouco que sabe do mecanismo básico da reprodução. Em voz baixa, no quarto fechado. Algo impensável. Talvez por ser uma conversa confusa, de uma solteira que supostamente contava algo que nunca havia experimentado.
Mas foi depois dessa conversa que para Ada finalmente fez sentido as imagens dos catecismos de Carlos Zéfiro que havia visto bem mais nova, ao procurar um gibi debaixo do colchão de Tio Joca. Antes da época da Miss Nancy. Ada achou aquela publicação em papel amarelado de segunda, com aspecto de coisa mal feita e pecaminosa. Abriu-a e suas cruas imagens de cópulas queimaram suas pequenas pupilas. Pecado! Enorme! Melhor fingir que não tinha visto nada. Colocou-as debaixo de um colchão também em sua memória. Felizmente o cérebro é capaz de fazer coisas assim: adiar para depois o que é impossível assimilar no momento.
E então, em uma noite de domingo, vem outra peça-chave do quebra-cabeça que ainda levaria um tempo para ser devidamente montado.
Domícia, empregada da casa de uma tia, jovem meio aloucada, peituda, coxas grandes, riso solto na cara, cabeluda, gosta de contar histórias divertidas e casos sem pé nem cabeça. Sempre que Ada e Estevão vão à casa da tia, cujo filho tem mais ou menos a mesma idade deles, a grande diversão é conversar com Domícia.
Esperam que ela termine de lavar as panelas. Termine de limpar a cozinha. Termine de fazer tudo o que tem que fazer, antes de levá-los para seu quarto e lhes contar suas invencionices.
Mal cabem todos no quartinho, janela ao lado da porta, velho armário de madeira encostado na parede, cama de colcha desbotada em outro, e suas coisas – pó, batom, ruge, esmalte – sobre a desgastada mesinha ao lado da cama. Um cheiro almiscarado de coisas velhas, úmido e rançoso, não de todo ruim, completa o cenário.
Domícia ri, desenfreada, contando suas bobagens.
E nesse dia, mais desenfreada do que nunca, por algum motivo lhe ocorre mostrar a seu pequeno público como era uma xoxota por dentro (agora já não dizem mais pepita).
Sem preparação nem suspense, tira a calcinha de algodão, sobe o vestido de chita, e planta uma bananeira bem à frente deles, escancarando as pernas a uma altura que ficava, mais ou menos, junto aos ombros dos dois meninos mais altos. A lição é especialmente dedicada aos meninos, mas o assombro de Ada, na ponta dos pés, não é menor. Uma menina não vê o que tem entre as pernas. Vê a parte externa, mas dificilmente sabe como são as coisas por baixo e, muito menos, internamente. Muito menos ainda, uma xoxota grande de mulher feita, cabeluda e, dadas as circunstâncias do momento, certamente um pouco inchada. Aquela úmida flor avermelhada que se abre cercada pelo cerrado negro dos cabelos é para Ada uma revelação assombrosa. Em nada se parece com a pequena fenda que é a sua lá embaixo e que mãe lhe ensinara a chamar de “pepita”.
Estevão e o primo, passando o grande embaraço do primeiro momento, não conseguem parar as risadas, enquanto ela, como que pregada, abre os olhos, boquiaberta. Tem a impressão de ver um fogo ardendo naquela flor vermelha e preta.
Maria José Silveira é escritora e tradutora, autora de “Maria Altamira” (Instante, 2021).
* As arqueologias faz parte do livro “Educação Sentimental Feminina”, ainda não publicado.