Leandro Durazzo
1) Margarida costurava cada botão com um fio de cabelo. Nem sempre seu. Pensava que o botão assim costurado confortaria as cabeças de onde provinham, tranquilizando quem não pudesse botar a cabeça no travesseiro e dormir. Todos deviam ter casa, Margarida pensava.
2) Assim que fechou o guarda-chuva, o sol sorriu. Lisandro sabia que o dia ia ser difícil, o arrepio em sua pele dizia isso quando o motorista do caminhão, cegado pelo sol, perdeu o controle e atropelou o moço. Sobre o guarda-chuva, reaberto no asfalto, chovia de novo.
3) A gata despertou devagar. Passava um sol fresco pela janela e duas ou três moscas ocupavam o quarto de dormir. Bocejando, a gata caminhou lentamente até a escada. Desceu. O leite já estava posto e ela só fez tomá-lo. “Que bom”, pensou. “Assim não me atraso para o trabalho.”
4) “Agora imagine” começou o Sr. Dantas, “uma tristeza tão grande que cobriria meia Eurásia. Pois bem. Por sorte, segundo os últimos relatórios, ela ainda se arrasta sobre as Américas e a Eurásia segue a salvo por mais um tempo.”
5) Carnaval. A esquina estava cansada. Já quase amanhecia, àquela hora só um cachorro velho dormia junto a um mendigo e todos os outros seres se arrastavam, meio bêbados ou muito, para casa. Para a cama. O que viesse primeiro. O sonho daquela esquina, trepar sobre um lençol.
6) Cadenciada era a palavra certa para definir aquele barco. Não o barco em si, mas sua jornada. O tempo corria em seu casco ao tique-taque das ondas. Chamava-se ingratidão, quem não sabia daquilo. Mas o barco carregava os ingratos mesmo assim.
7) Quando penso no tempo em que vivi na China, a única coisa em minha mente é a calma que hoje já não tenho. Não que ter sido substituto da Grande Muralha fosse função das mais honrosas, mas pela força das circunstâncias (aquietar-me, encalacrar-me às outras pedras, horas e horas na posição de fronteira) era possível chamar felicidade aquela pasmaceira. O tempo em que vivi na China foi suficiente para que eu me visse, desdobrado o corpo, a olho nu do espaço. Hoje, nem no espelho eu me acho.
8) Digamos que há, naquela cratera, apenas dois salva-vidas. Dois. E que um de nós três terá de… enfim, se sacrificar. Não serei eu. Roberto, nem você! Plínio ficou para trás? Diabos, nem vi quando ele caiu. E aquela sombra adiante, por que está crescendo? Plínio? Plínio!
9) A menina ficava impressionada com o nome Ezequiel, que jurava ser de anjo. Tanto que pediu ao pai um passarinho para assim batizá-lo. Ele chegou com um periquito azul de asa quebrada, que trocou numa caixa de cigarrilhas. Ezequiel conseguiu voar uma única vez, anos depois.
10) A flecha certeira varara o ventre daquele branco. Assim que pisou na praia. Caravela atrás já ia embora, fugida, com medo. A terra em que chegavam, armados até os dentes para a glória de um tal de Deus, vociferava de volta. “Aqui vocês jamais.”
11) Meia dúzia de celerados decidiam os destinos do país. Até as urnas sentiam ganas de matar quando os fascistas as corrompiam. Meia dúzia de facínoras, mas meia riqueza do continente. Nem do país: do continente. Meia dúzia de celerados, ricos feito a morte, prestes a perder.
12) Para fugir de si, o homem tem de se haver com a face da morte. Para viver integralmente também. Era nisso que meditava Lisandro quando o passarinho negro da ida imensurável sussurrou em seu ouvido: “Cuidado.” Cuidou, mas não deu tempo. Mais um dia perdido, pensou, já morto.
13) Bastou que o presidente assinasse decreto liberando a posse. Nem dois dias depois, todos os maus espíritos já haviam encontrado abrigo nos corpos da nação. Possuídos, loucos, mortos por si, sequer precisaram de armas. O presidente, como de costume, percebeu-se inútil.
14) Éramos muito fáceis de matar, naquele tempo. Como hoje são os sonhos. Bastava gritar mais alto, pisar mais forte, bastava que alguém nos chapinhasse e pronto. Éramos tontos como são os espelhos. Na verdade, sermos poças d’água também não ajudava. Bastava que esquentasse.
15) Lá fora o mundo desabando e, sem que ninguém nem bem notasse, sem nenhuma suspeita, aqui dentro o mundo vicejando feito musgo em pedra antiga. Vida é como chamam. Por incrível que pareça, por impossível: lá fora o mundo tomado por demônios, aqui dentro a gente rindo.
Leandro Durazzo é antropólogo e tradutor, autor de “Mar de Viração” (Moinhos, 2018).