Paulo Paniago
1 Mais caro
Não se esquece de me cremar, meu pai dizia, toda vez que a gente ia se despedir dele, depois da visita. Eram as últimas palavras que pronunciava quando estávamos de saída e supúnhamos que seriam as últimas que ele realmente diria, quando chegasse a hora.
Pode deixar, pai, a gente não esquece, eu respondia, rindo, ou meu irmão dizia, nós nos revezávamos na função. Era parte de um ritual, a gente cumpria a nossa parcela. Ele tinha dito e costumava reiterar de vez em quando que não se importava com o que fizéssemos a respeito das cinzas resultantes da cremação. Por ele, podia jogar no vaso e dar descarga, o que também parecia parte da piada. Morreu, acabou, insistia, e lhe dava arrepios pensar em missa ou qualquer outro dos rituais da convenção aceita pela maioria das pessoas.
Quando morreu, mandamos enterrar o corpo, era mais barato e ele ensinou a vida toda que não existe alma, que nenhum fantasma dele iria voltar para puxar nosso pé à noite.
2 Despojos
Uma vez, ao comentar o assunto da cremação, meu pai falou sério. Nunca fui proprietário de terras nesta vida e não é depois de morto que pretendo começar, disse.
3 Desconforto
Longe do nosso pai, meu irmão e eu discutíamos a vontade dele de ser cremado, sem chegar a um tipo de acordo.
É mais uma forma de exibicionismo que qualquer outra coisa, eu dizia.
Não acho, não, ele rebatia. Meu irmão sempre parecia disposto a defender nosso pai. Acho que é a maneira dele de recusar os ritos da igreja e dar a última palavra ao próprio anticlericalismo, meu irmão acrescentava.
Seja como for, eu insistia, cremação não deixa de ser também um rito e ele sempre foi contra todos os rituais, acho que tanto quanto é contra a igreja.
Porque as igrejas são cheias de rituais, é isso o que você quer dizer? É, acho que nesse sentido, sim, ser contra rituais é uma forma também que ele encontrou de manifestar anticlericalismo.
Você aprendeu essa palavra nova e agora fica querendo usar, né?, provoquei. E você, puxa-saco dele como é, capaz de se cremar junto só para fazer companhia.
Haha, engraçadinha, ele dizia, sem rir.
De todo jeito, acrescentava, cremar é uma forma de acelerar o trabalho da natureza e ir direto ao pó.
Só não entendo por que tanta pressa.
Talvez a pressa de ser logo esquecido. Ele sempre se sentiu tão desconfortável vivo.
4 Fruto de indecisão
Por último, meu pai decidiu que queria mesmo ser enterrado, depois de toda aquela série de piadas a respeito de cremação que tinha feito ao longo dos anos.
Era tudo palhaçada?, perguntei, me referindo àquela quantidade de falas que ele havia despejado no nosso ouvido, meu e do meu irmão. Anos de pedidos e argumentos que nosso pai tinha desenvolvido em torno da cremação, o quanto era melhor para o meio ambiente blábláblá. A gente sabia que ele não dava a mínima para o meio ambiente, o que tornava a conversa toda um tanto ambígua e duvidosa. O que te fez mudar de ideia mais uma vez?, insisti.
Acho que não posso tirar dos vermes a oportunidade de saborear a minha carnezinha podre, ele respondeu, uns dez por cento apenas de sarcasmo. Há um ciclo da natureza que se retroalimenta e é importante respeitar, ele continuou, mas já tínhamos entendido o ponto-chave. Ultimamente, começou a dizer que leu em algum lugar a respeito de a natureza cultivar humanos para a própria alimentação. O que é uma mudança e tanto de perspectiva.
A cada semana, ele muda de ideia. A inconstância é seu leme. Faço uma pergunta, com intenção de provocá-lo.
E que tal se a gente congelasse o seu corpo em nitrogênio até descobrirem um jeito de fazer você viver eternamente?
Se não fosse tão caro, sabe que eu topava, ele teve a cara de pau de dizer, um sorriso de esperança no rosto. Mas não consigo imaginar por que ele ia querer viver mais tempo e num futuro que nada tem de tão interessante ou promissor.
A verdade é que acho que ele não está sabendo muito como lidar com a proximidade da morte.
Mas se pensar bem, quem sabe?
5 Sabedoria do fantasma
As lembranças vêm em fragmentos soltos. Me lembro de estar estudando no meu quarto, meu pai para à beira da porta, apoia um pé sobre a perna, como quem vai desenhar um quatro, e começa a falar de um livro em que lê, a respeito das profecias de Cassandra e de um poema em torno dela, escrito por Licofron, traduzido para o inglês e o francês, e o que aconteceu com o tradutor inglês, lorde Royston, morto muito jovem, aos vinte e quatro anos de idade, em 1808, dois anos depois do lançamento da tradução, num naufrágio no mar Báltico.
Depois de mencionar o modo como Cassandra é ignorada pela coletividade, mesmo quando prevê desgraças que de fato acontecem, meu pai pergunta, retoricamente:
— Sabe qual a lição que se tira de tudo isso? — ele balança a cabeça, como quem sabe que vai pronunciar uma sabedoria e se sente orgulhoso por isso. — Que a verdade está na boca de uma mulher.
Ao que respondo, muito sucintamente, num tom que poderia parecer brusco para um desavisado:
— Óbvio.
E ele se retira para o banheiro em seu quarto, para urinar, antes de voltar para a sala e prosseguir na leitura que está fazendo.
Depois que morre, esses fragmentos retornam como se fossem o fantasma de meu pai, ou talvez isso que a gente chama de fantasma não passa no fundo do trabalho cotidiano da memória.
6 O que leem os mortos
Está sabendo da última do pai, me pergunta meu irmão. E ante minha negativa, se põe a contar. Ele quer que do lado de dentro da tampa do caixão exista um texto gravado, mas ele ainda não escolheu que texto vai ser. Você sabe, para ele ler para sempre, enquanto estiver morto.
Mas como é que ele vai fazer para ler lá embaixo, no escuro, pergunto, como que dando sequência à maluquice do raciocínio.
Ah, claro, como se isso fosse o mais importante mesmo, diz o meu irmão, que de súbito lê meu pensamento. Ele falou que quer um dispositivo que ilumine o caixão por dentro e que pode ser acionado pelo dedão. O dispositivo vai ser enterrado junto com ele, na mão, é claro.
Entendi, digo.
Mas se ele não escolher logo o trecho de livro para levar para a eternidade, talvez não dê tempo. Meu irmão ergue uma sobrancelha, apenas de um lado.
Se ele morrer antes, sugiro, a gente escolhe um bem esculhambado, só de sacanagem. De um livro que ele detesta, um desses best-sellers que acabaram de sair.
Meu irmão me dá um sorriso cúmplice. Ou a letra de uma música brega, ele entra na onda, dessas que ele também detesta.
7 Por fim
Por último, nosso pai passou a viajar muito de avião, sobretudo viagens internacionais, depois que se aposentou. Alegava o desejo de que o avião poderia cair no meio do oceano, e isso traduzia a sua vontade — sem ligar muito para quem iria morrer junto, só por conta do pequeno capricho. Com os índices de acidentes aéreos em queda vertiginosa, o plano dele parecia remoto, mas nada de desânimo. A esperança é a maior droga natural que o ser humano inventou, dizia.
Imagina a economia com funeral e enterro, acrescentava ao argumento, na esperança de nos converter para sua nova causa. Ninguém precisa tomar qualquer providência, além de abrir processo contra a empresa aérea, mas isso é trabalho para os advogados. Ele sorria. Você não tem que fazer mais nada, é só sentar quieto no seu canto e chorar. Isso, se a pessoa for de chorar.
No caso de vocês, prosseguia, espero que contem piadas a meu respeito, lembrando nossas conversas a respeito de morrer e espero também que riam muito de toda essa bobagem.
Paulo Paniago é escritor, professor de jornalismo na Universidade de Brasília, autor de “Com meus dentes de cão” (Letramento, 2022).